domingo, 13 de dezembro de 2009

Segunda parte do nº2 do artigo 95º do CPTA: alguém disse 'jurisprudência'?


INTRODUÇÃO:

Na última aula prática da turma 3, falávamos a respeito do significado da segunda parte do nº 2 do artigo 95º do CPTA. Será a consagração do princípio do inquisitório no que toca a processos impugnatórios de acto administrativo? Ou será apenas a reiteração do princípio jura novit curia, consagrado no artigo 75º CPTA, mantendo-se intocado o princípio do dispositivo no âmbito do Contencioso Administrativo?

Foi então que o professor Tiago Macierinha respondeu uma pergunta minha com o seguinte desafio: descobrir a perspectiva da jurisprudência sobre o assunto.

Chamei ao desafio a minha colega Raquel Henriques, que logo aceitou participar. E assim, instigados, partimos em busca da perspectiva da jurisprudência quanto ao problema, que encontra na doutrina diferentes soluções.

O que se segue é o resultado da nossa pesquisa.

DOUTRINA:

Primeiramente, para situar o problema, importa proceder a uma breve síntese das principais teses doutrinais acerca do tema. Para tanto, parece-nos que seja lícito dividir em três grupos as principais teorias acerca do tema, quais sejam:

- Teoria subjectivista;

- Teoria objectivista pura (ou do “conhecimento oficioso pleno”);

- Teoria objectivista moderada (ou do “conhecimento oficioso mitigado”).

Defensor da tese subjectivista, o professor Vasco Pereira da Silva sustenta que no nº2 do artigo 95º do CPTA não se encontra uma excepção ao número anterior, mas sim uma confirmação do mesmo. O que está sempre em causa são os direitos dos particulares e uma actuação administrativa lesiva desses mesmos direitos, e não a defesa da legalidade. O juiz encontra-se limitado pelo objecto do processo, pelos factos que lhe são apresentados pelas partes, o que não invalida no entanto o seu dever de “identificar” ilegalidades do acto administrativo diferentes das apresentadas pelo autor. E note-se que “identificar” não se confunde com trazer factos novos ao processo, significa apenas que o juiz pode re-qualificar juridicamente os factos apresentados pelas partes quando assim o entenda. Trata-se de um alargamento do princípio jura novit curia,através da superação de uma visão restritiva da causa de pedir correspondente à técnica dos vícios do acto administrativo.

Desta forma, temos consagrado no nº2 do artigo 95º do CPTA não o Princípio do inquisitório mas sim o Princípio do dispositivo.

De acordo com a segunda teoria, o preceito atribuiria ao juiz o dever de ir à procura de vícios do acto administrativo para além daqueles aduzidos pelo autor. O tribunal deveria, para tanto, olhar não só para os factos trazidos ao processo pelas partes como também qualquer outro facto de que tenha tomado conhecimento, nomeadamente pela análise do processo instrutor junto aos autos por efeito do artigo 84 do CPTA. Significa isto dizer que ao juiz incumbe a tarefa (porventura árdua) de percorrer todo o procedimento de criação do acto impugnado a procura de novas causas de invalidade que escaparam ao próprio autor. O objectivo disso seria a tutela da legalidade. Faz lembrar os traumas da infância do direito administrativo, quando o particular era tido como apenas um auxiliar no processo, que visava não à defesa de seus direitos, mas sim à tutela da legalidade. Esta tese apresenta problemas na medida em que põe em causa a imparcialidade do juiz, que passa a agir como parte no processo. Conforme ressaltou o professor Tiago Macieirinha, o problema se torna mais evidente quando há contra-interessados no processo, que, sob esta lógica, teriam não só de rebater os argumentos aduzidos pelas partes mas também a fundamentação do juiz para justificar a inclusão de ‘novas’ causas de invalidade. O juiz então terá de apreciar a bondade de sua própria fundamentação, tarefa, no mínimo, complicada. E o pobre contra-interessado terá de trabalhar em dobro!

A terceira teoria defende também o princípio do inquisitório, mas restringe a tarefa do tribunal de buscar novos vícios aos factos trazidos ao processo pelas partes. O juiz poderia, assim, transformar factos meramente instrumentais em principais, consubstanciadores de alguma causa de invalidade que não tenha sido alegada pelas partes. A letra da lei oferece suporte a esta tese uma vez que proscreve o dever de ‘identificar’ a existência de causas de invalidade e não de ‘introduzir’ novos factos. Desta forma, a legalidade é subsidiariamente tutelada, mas através de uma busca com menor âmbito. O juiz tem o dever de levantar ‘novas’ causas de invalidade, mas só o pode fazer dentro daquilo que as partes alegaram, mesmo que a título incidental. Basicamente, o juiz deve identificar as causas de invalidade que as partes revelaram ‘sem querer’ ou ‘sem saber’. De qualquer forma, vigora a limitação imposta pela primeira parte do nº 2 do artigo 95º CPTA, segundo a qual o juiz não deve pronunciar-se sobre uma causa de invalidade “quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito”. Por outro lado, pode o autor restringir a sua causa de pedir, ao abandonar expressamente fundamentos que havia levantado (91º, 5 CPTA).

JURISPRUDÊNCIA:

STA, processo nº 0121/09, acórdão de 28 de Novembro de 2009.

Relator: São Pedro

Em causa está a revogação de um acórdão do TAF de Viseu pelo TCA Norte e uma alegada violação do nº2 do artigo 95º do CPTA, pelo último, por não ter apreciado oficiosamente a existência de um eventual vício do acto administrativo em causa.

Relativamente ao espírito do nº 2 do artigo 95º do CPTA, o STA pronunciou-se no sentido de que este artigo não impõe ao juiz o dever de conhecer oficiosamente todas as causas de invalidade do acto. Na verdade, o dever de conhecer causas de invalidade não alegadas pelo autor limita-se às nulidades e anulabilidades que, ainda que não alegadas, tenham resultado da discussão da causa factos suficientes para o seu conhecimento.

Daqui parece resultar que o arresto corrobora a teoria ‘objetivista moderada’. O tribunal nunca pode trazer para o processo factos novos, estes têm necessariamente de ser trazidos pelas partes, o tribunal só pode apreciar causas de invalidade que lhe tenham sido directamente apresentadas e aquelas que, ainda que não levantadas pelo autor, lhe tenham sido apresentados factos suficientes para o seu conhecimento.

Segue um trecho do referido acórdão:

“Violação do art. 95º, 2 do CPTA.
Impõe-se, então, saber se o TCA Norte decidiu bem ao revogar a decisão do TAF de Viseu, por falta de alegação de um erro nos pressupostos do acto que determinou a demolição.
O recorrente alega que o TCA violou o art. 95º, 2, do CPTA, por não ter apreciado a existência do eventual vício do acto (erro nos pressupostos quanto à alegada violação do art. 73º do RGEU.
Vejamos.
O art. 95º, n.º 2 do CPTA veio modificar o anterior art. 57º da LPTA – que indicando uma ordem de apreciação dos vícios, foi interpretado como implicando a prejudicialidade do conhecimento de todos os vícios perante a procedência de um deles – e determinar que “nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas pelas partes contra o acto impugnado, excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito”.
Mas não ficou por aqui.
Acrescentou ainda que: “assim como deve identificar a existência de outras causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias, quando o exija o respeito pelo princípio do contraditório”.
Do preceito resulta, sem dúvida, o dever do juiz identificar causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, o que levanta vários problemas.
Com interesse para o julgamento deste recurso impõe-se saber em que termos o art. 95º, 2 impõe ao juiz o dever de identificar novas causas de invalidade e se o Tribunal de Recurso também tem esse poder.
Numa primeira leitura poderíamos ser tentados a ver no art. 95º, 2, do CPTA a consagração de uma regra que tornava de conhecimento oficioso todos os vícios do acto administrativo.
Nesse sentido, por exemplo, AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, ob. cit. pág. 483, quando consideram de conhecimento oficioso, podendo ser conhecidas ainda que não suscitadas pelas partes, os “vícios do acto administrativo que as partes não tenham alegado – art. 95º, n.º 2”. A consequência deste entendimento é a de que todos os vícios do acto “mesmo aqueles que apenas são fonte geradora de anulabilidade passam a ser de conhecimento oficioso” (ob. cit. pág. 485).
Mais cauteloso VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 8ª Edição, pág. 221 e nota 430, também admite que o juiz deve “averiguar oficiosamente a existência de ilegalidades do acto impugnado”, propondo todavia uma interpretação “em termos restritivos” limitando esse dever aos casos de ofensa de “direitos fundamentais”.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, propõem uma leitura restritiva do preceito limitando, pelo menos, “de jure condendo” o poder - dever do juiz, à violação de interesses públicos – direitos fundamentais e lesão de interesses referidos no art. 9º, 2 do CPTA.
ELISABETH FERNANDES, Cadernos de Justiça Administrativa, 76, pág. 44 e seguintes sustenta que apesar de haver um dever de identificar as causas de invalidade, o juiz só pode conhecer das mesmas se for do interesse do autor : “… o tribunal só está autorizado a exercer a sua função de fiscalização se o autor a quiser adicionar ao acto postulativo com que deu início à demanda – acolhendo os benefícios da causa de invalidade acabada de identificar (…)”.
A nosso ver a lei não impõe qualquer restrição ao tipo de invalidades em causa não havendo razão para restringir o preceito à violação dos interesses a que se refere o art. 9º, 2 do CPTA. E também não permite distinguir entre o dever de identificar o vício e o dever de o conhecer.
Contudo, importa ter em atenção outras disposições do CPTA, com reflexos no “objecto do processo” que, de algum modo podem limitar e restringir o uso de tal poder dever.
Em primeiro lugar, o próprio art. 95º, 2, do CPTA, na primeira parte, exclui o dever de pronúncia quando o tribunal “não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito”. Qualquer que seja o sentido desta exclusão, o certo é que afasta o dever de pronúncia mesmo relativamente a questões suscitadas pelas partes, desde que não existam nos autos elementos indispensáveis. Julgamos que o artigo se reporta a situações deste tipo: um acto é atacado por falta de fundamentação e erro nos pressupostos e o Tribunal anula-o por falta de fundamentação sem poder apreciar o vício de erro de direito por não ser possível identificar cabalmente os motivos de facto e de direito.
Em segundo lugar, resulta do art. 91º, n.º 5 do CPTA que “nas alegações pode o autor invocar novos fundamentos do pedido, de conhecimento superveniente ou restringi-los expressamente e deve formular conclusões”. Deste preceito decorre que o autor pode abandonar “expressamente” fundamentos do acto, o que significa que, essas causas de invalidade abandonadas não podem ser conhecidas pelo Tribunal ao abrigo do art. 95º, n.º 2 do CPTA sob a “capa” de outras causas de invalidade não alegadas.
Finalmente e em terceiro lugar, o art. 92º, 5 reporta-se à elaboração da sentença, o que quer dizer que só na fase de elaboração da sentença e depois de ter todos os elementos de facto o juiz coloca a hipótese de existirem outras causas de invalidade não alegadas. Tal pressupõe que os factos adquiridos processualmente nesse momento, devem ser suficientes para apreciar o vício não alegado.
Deste modo, o dever de identificar causas de invalidade não alegadas limita-se às nulidades e às anulabilidades que o autor não tenha expressamente abandonado e relativamente às quais (nulidades e anulabilidades) tenham sido oportunamente alegados pelas partes, ou resultem da discussão da causa, factos suficientes para o seu conhecimento. Estão neste campo, por exemplo, os vícios estritamente jurídicos como sejam os decorrentes de aplicação de normas inconstitucionais ou ilegais.
Por outro lado, as anulabilidades, cujos factos principais de onde decorrem, não constem do processo, não devem ser identificadas pelo juiz na fase da sentença, o que significa, por exemplo, que o Tribunal nunca poderá reabrir a fase de instrução para conhecer as invalidades não suscitadas tempestivamente pelas partes.
Ora, conforme decidiu o TCA – Norte, no caso dos autos, não existiam factos alegados para se poder saber se o motivo invocado no acto (obras de ampliação em desconformidade com art. 73º do RGEU) era, ou não, exacto nem sequer o juiz tinha o dever de identificar essa possível causa de invalidade do acto. O STA, como Tribunal de Revista, deve aceitar os factos dados como provados, sendo que o TCA disse expressamente a fls. 287 que “não resultam dos autos elementos suficientes” para que a violação do art. 73º do RGEU possa ser verificada.
Deste modo, torna-se desnecessário saber se o TCA, na qualidade de Tribunal de Apelação, podia ou não fazer uso do art. 92º, 5 do CPTA, pois ainda que o pudesse fazer só poderia atender aos factos constantes do processo. Como o processo não fornecia os factos indispensáveis para o seu conhecimento, então, é certo e seguro que a questão da eventual violação do art. 73º do RGEU não poderia ser conhecida no TCA – ou melhor não poderia ser identificada e depois conhecida.
Assim podemos concluir que a recorrente não tem razão quando imputa ao acórdão recorrido a violação do art. 92º, 5, do CPTA.”

TCA – Sul, processo 05411/09, acórdão de 17 de Setembro de 2009.

Relatora: Teresa Sousa.

O acórdão admite uma leitura objetivista do art. 95º, nº 2 do CPTA, embora não clarifique o alcance do dever de o juiz identificar oficiosamente causas de invalidade.

Trecho do acórdão:

“Da nulidade da sentença
A nulidade da sentença prevista na alínea d) do nº 1 do art. 668º do CPC verifica-se se “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”.
Tal nulidade, de omissão de pronúncia ou excesso de pronúncia, traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no nº 2 do art. 660º do CPC, que é o dever de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação.
No caso dos autos a alegação do recorrente reconduz-se a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, já que o tribunal teria conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento.
No entanto, tal nulidade não se verifica, já que, de acordo com a previsão do art. 95º, nº 2 do CPTA, o tribunal tem o dever de conhecer de causas de invalidade diferentes das que tenham sido alegadas, pelo que não estava o tribunal recorrido impedido de apreciar a eventual omissão da formalidade de audiência prévia.
Nestes termos, improcede a arguida nulidade de sentença”

CONCLUSÃO:

O resultado de nossa pesquisa aponta para uma adesão pelo STA à corrente que chamamos ‘objetivista moderada’, em termos que atribuem ao juiz o poder-dever de identificar, de ofício, causas de nulidade ou anulabilidade do acto que resultem das alegações das partes mas que o autor não tenha invocado na causa de pedir. No entanto, o juiz só o pode fazer se constar do processo dados suficientes para tanto, e desde que o autor não tenha expressamente abandonado parte do pedido que referisse à invalidade em causa.

Se esta será ou não a orientação mais correcta, não nos cabe decidir. No entanto, temos de reconhecer que os problemas acima referidos quanto à orientação puramente objectivista são ao menos atenuados. A tarefa do juiz parece menos com a tarefa das partes no processo e o agravamento da posição do contra-interessado é bastante menor uma vez que, ,No que toca ao processo, o que não ficou dito pelas partes, não existe.

BIBLIOGRAFIA:

- CUNHA, Estêvão Nascimento da, Impugnação Contenciosa de Actos Administrativos no CPTA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008

- SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2009.

- DGSI

- STA, processo nº 0121/09, acórdão de 28 de Novembro de 2009.

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0adcda8983f609b5802576640043dbc5?OpenDocument&ExpandSection=1

- TCA – Sul, processo nº 05411/09, acórdão de 17 de Setembro de 2009.

http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/3c3da00d36f48b1680257638004c82a5?OpenDocument

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