quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Comentário ao Acórdão do Pleno do STA de 3.05.2007, P. 029420




O presente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante: “STA”) incide sobre a questão da falta de prova por facto culposo da Administração, que constitui o objecto da causa de pedido por parte de particulares (A.), implicar necessariamente que recaia sobre uma das partes envolvidas e sobre possíveis terceiros (B.) o risco pelo facto praticado pela Administração.

De facto, o que os presentes Recorrentes (A.) pretendem é a anulação do despacho do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que negou provimento ao recurso hierárquico interposto de despacho anterior e que os excluiu de um concurso de acesso interno para várias categorias de técnicos fiscais (e aprovou terceiros candidatos aos cargos), pelo facto de alegarem falta de rigor na avaliação das suas provas de acesso, sustentando que se os respectivos testes fossem devidamente reanalisados alcançariam estes a nota mínima de acesso aos referidos cargos técnicos, isto é, interpõem uma acção administrativa especial de anulação de um acto administrativo, prevista no art. 46º, nº2, a) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante: ”CPTA”), por vício de erro nos pressupostos de facto da decisão da Administração. O que sucede é que, tendo sido a Administração notificada, nos termos do art. 528º do Código do Processo Civil (doravante: “CPC”), para juntar aos autos os testes por si realizados, esta afirma não os ter, inviabilizando a prova aos onerados (a quem era impossível apresentar os mesmos, por não lhes ser devida cópia dos testes). Ora, por este mesmo facto foi negado provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho que os excluiu do concurso, tendo em conta que recaindo sobre estes o ónus, atendendo à regra geral do art. 342º, nº1 do Código Civil (doravante: “CC”), estes não apresentaram a prova que constituía fundamento da sua causa de pedido.

Vem então o presente recurso dar razão aos Recorrentes, ao sustentarem que a sentença do Acórdão que lhes negou provimento ao recurso hierárquico é nula por excesso de pronúncia, atendendo ao art. 668º, nº1, d), do CPC, invocando a violação do princípio do contraditório (art. 3º do CPC), pelo facto de, não tendo a Administração juntado as provas que lhe cumpria apresentar, atendendo ao art. 519, nº2 do CPC, que remete para o art. 344º, nº2 do CC, vir a verificar-se uma situação de inversão do ónus da prova, isto é, o ónus passar a estar do lado da Administração e ser esta a responsabilizada pela falta de apresentação dos testes alegadamente mal avaliados. Mais especificamente, vem o art. 8º, nº3, do CPTA estatuir o princípio da cooperação e da boa-fé processual, impondo à Administração o dever de remessa ao tribunal do processo administrativo e dos demais documentos respeitantes à matéria de litígio (atendendo também à desigualdade da natureza das partes envolvidas), por presumir que a recusa de apresentação dos documentos em falta resulta da intenção de impedir ao tribunal o acesso a elementos que beneficiariam a parte contrária, atendendo assim à consequência do art. 84º, nº5 do CPTA, considerando provados os factos alegados pelos autores, aqui, os Recorrentes (e assim, a sustentação da inversão do ónus da prova). Como diria VASCO PEREIRA DA SILVA, esse dever de cooperação da Administração com os tribunais ”(...) nem [sequer] se traduz numa situação de desigualdade, relativamente ao particular, mas sim com a necessidade de facultar ao tribunal elementos de prova, que tanto podem ser favoráveis à Administração como aos particulares”, tendo em conta a ideia de que o processo administrativo é das partes, em igualdade de circunstâncias, entendidas na perspectiva subjectivista do Contencioso Administrativo.

O STA decide a favor dos Recorrentes, entendendo que, invertido o ónus da prova nos termos expostos, a falta de prova pela parte onerada resolve-se a favor da parte contrária (os aqui Recorrentes), o que vale a dar por procedente o vício de erro nos pressupostos de facto que no recurso contencioso aqueles haviam invocado. Até porque, “no quadro da relação jurídico-administrativa é mais fácil ao devedor fazer a prova do cumprimento do que ao credor provar o inverso” (TIAGO MACIEIRINHA), o que equivale a dizer que, no caso em apreço, havendo uma inversão do ónus da prova e correndo o risco por conta da Administração, devendo ter esta em sua posse os documentos em falta, e não já os Recorrentes, é a esta que deverá caber esse mesmo ónus.

Se a Administração não envia o processo, o Tribunal dá como provados os factos alegados por A. – presunção ficta -, como referido anteriormente. Entendemos, tal como Tiago Macieirinha, que esta presunção pode ser ilidida no caso de a Administração ter, por exemplo, outros elementos que sejam suficientes para fazer prova.

Ora, parece a decisão do STA fazer todo o sentido, já que, não sendo permitida a inversão do ónus da prova neste caso, implicaria, dada a impossibilidade dos Recorrentes de sustentar assim a sua causa de pedido, não tendo qualquer acesso aos documentos de avaliação, a negação absoluta do seu direito fundamental de acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efectiva e plena, patente nos arts. 20º e 268º, nº4, da Constituição da República Portuguesa (doravante: “CRP”), respectivamente.

Está em causa uma relação jurídica multilateral, ou seja, há um acto administrativo que, simultaneamente, beneficia um particular (A) e prejudica outro (B – quem ficou com o lugar do concurso). Assim sendo, iremos analisar a possibilidade de ter havido, por parte da Administração, a violação do princípio da tutela de confiança relativamente ao terceiro (B). “No direito administrativo, o princípio da boa fé encontra-se previsto no artigo 266º, nº 2 da Constituição e no artigo 6º - A do Código de Procedimento Administrativo (doravante: “CPA”). Este último alargou o âmbito subjectivo de aplicação do princípio ao abranger não apenas a administração, mas também os particulares no seu relacionamento com esta. [...] Destaque-se que é o único dos princípios vertidos no CPA aplicável também aos particulares e não somente à Administração.” (PEDRO TELLES).

A concretização deste princípio implica o cumprimento de certos deveres para as partes: (i) não causar prejuízos injustificados à contraparte; (ii) não arguir invalidades a que tenham conscientemente dado azo; (iii) não criar, por via de comportamentos contraditórios, uma confiança legítima na outra parte, com o intuito de obter algum benefício (venire contra factum proprium); (iv) violar os deveres de protecção, informação e lealdade durante a fase negocial (A. LEITÃO).

Uma das vertentes deste princípio é o princípio da tutela de confiança que visa proteger a esfera jurídica do lesado contra uma actuação lesiva imprevisível e que, consequentemente, este último não pudesse evitar.

O princípio da tutela de confiança implica, segundo REBELO DE SOUSA, a verificação de determinadas condições cumulativas: (i) uma actuação geradora de confiança; (ii) essa situação de confiança ser justificada; (iii) um investimento de confiança; (iv) o nexo de causalidade; (v) a frustração da confiança. Passemos, então, à análise de cada uma delas.

A actuação geradora de confiança implica a manutenção de uma determinada situação jurídica ou a abstenção de um determinado comportamento. Note-se que a emissão por parte da Administração de um acto administrativo manifestamente ilegal não se considera uma actuação geradora de confiança.

Se a confiança depositada pelo destinatário (terceiro – B.) na posição assumida pelo agente (em concreto, a Administração) for legítima, então entende-se que há uma justificação. É necessário que, objectivamente, se verifiquem “sinais exteriores da Administração que levariam um destinatário normal a acreditar na existência de uma situação de confiança” (PEDRO TELLES).

Só se poderá considerar que houve um investimento de confiança se o lesado tiver agido com base na declaração efectuada pela contraparte. Não se pretende, porém, tutelar o excesso de confiança.

Há, ainda, que ter em conta dois nexos de causalidade: um nexo entre o primeiro e o segundo requisitos e outro entre o segundo e o terceiro requisitos.

Por último, o lesado terá que ter visto frustrada a sua confiança pelo lesante.

A consequência da violação do princípio da boa fé é a anulabilidade do acto, nos termos do art. 135º do CPA. Pois este princípio é um princípio geral de direito que se encontra consagrado na CRP e no CPA e que vincula directamente a Administração.

Por outro lado, a violação da boa fé é um facto gerador de responsabilidade civil para o lesante, o que vem justificar a responsabilidade por culpa in contrahendo no âmbito da contratação pública.

Não há, contudo, factos suficientes para determinar se os requisitos se verificaram e para determinar se ocorreu a violação do princípio da tutela da confiança por parte da Administração. No entanto, considerando que, de facto, tal aconteceu, poderia estar em causa a responsabilidade civil pública por parte da Administração em relação a danos provocados a B. [art. 4º, nº 1, al. g), Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais].

Uma possível solução consistiria numa sentença de anulação do acto e de uma posterior repetição de todos os exames, possibilitando que todos estivessem novamente numa situação de igualdade. No entanto, esta não nos parece a melhor solução, uma vez que o erro foi da Administração e, como tal, o risco deveria caber-lhe apenas a esta e não aos particulares.

Defendemos, como solução, a aplicação analógica do art. 173º, nº 4 do CPTA, possibilitando a B. a recolocação em lugar de categoria igual ou equivalente àquele em que fora colocado ou, não sendo isso possível, à primeira vaga que venha a surgir na categoria correspondente. No caso sub judice, isso significaria que B manteria o seu lugar.

Quanto a A., a este deveria ser atribuída uma indemnização decorrente da responsabilidade civil pública da Administração por não ter atribuído o cargo a A., considerando que os factos foram provados e que ocorreu um vício de erro nos pressupostos de facto do acto administrativo em questão.



Bibliografia:

LEITÃO, A., A Protecção Judicial dos Terceiros nos Contratos da Administração Pública, Almedina, 2002.

MACIEIRINHA, Tiago, Da Ilicitude na Responsabilidade Civil da Administração Pública, Janeiro 2006.

PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009.

SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral - Introdução e Princípios Fundamentais.

TELLES, Pedro, O Dano na Responsabilidade Pré-contratual da Administração por Violação do Princípio da Boa Fé, Dezembro 2005.

domingo, 22 de novembro de 2009

Simulação de julgamento

SIMULAÇÃO DE JULGAMENTO

O Tribunal de Contas considerou, com fundamento tanto em vícios de ordem formal como material, serem inválidos os contratos de empreitada e concessão da auto-estrada A/5401, “Para Sítio Nenhum”, não tendo por isso concedido o respectivo Visto Prévio. Não obstante, tanto o dono da obra, o Instituto de Estradas de Portugal, como a empresa construtora, “Paisagens de Alcatrão”, se recusam ao cumprimento da decisão do tribunal, alegando que ela “não tem qualquer alcance prático, pois apenas dificulta os pagamentos, não impedindo que as obras continuem a decorrer com toda a normalidade”.
Perante as notícias dos meios de comunicação social, Francisco Esperto, Presidente do Conselho de Administração da construtora “Auto-Betão”, que tinha sido preterido no concurso público em questão, pretende pôr em causa a outra empresa sua concorrente, forçando o cumprimento da sentença do Tribunal de Contas, através dos mecanismos do Contencioso Administrativo, e logrando a suspensão imediata das obras em curso. Para tanto está disposto a utilizar todos os mecanismos do Contencioso Administrativo (sejam principais, urgentes ou providências cautelares), directa (acção para defesa de interesses próprios, acção popular) ou indirectamente (solicitando a intervenção do Ministério Público).

Quid iuris?

(N.B. Trata-se de uma hipótese meramente académica pelo que qualquer semelhança com factos e personagens da vida real é pura coincidência O presente texto constitui apenas uma hipótese de trabalho, destinado a delimitar as questões jurídicas objecto da simulação, podendo (devendo) os pormenores concretos do caso ser completados ou reconstruídos, na simulação de julgamento a realizar em cada uma das turmas).

sábado, 21 de novembro de 2009

Este sistema administrativo dava um filme indiano...





... uma brevíssima abordagem ao sistema de justiça administrativa da União da India.








Quando nos foi proposta esta tarefa, cedo surgiu a vontade de dar uma abordagem alternativa ao tema. Na altura, conhecemos o Paramjeet, estudante indiano de Direito, a fazer o seu mestrado internacional na nossa faculdade. Queríamos fugir à tradicional exposição teórica sobre um qualquer sistema jurídico e pensámos num diálogo/entrevista com vista à exposição do trabalho.


No entanto, as coisas não foram tão fáceis como pareciam; o nosso "entrevistado" não conseguiu dar-nos mais que um panorama geral do sistema administrativo no seu país. O resultado desta entrevista, do qual não vos queremos privar, é abaixo apresentado a título de curiosidade.




Durante a entrevista ficou claro que estamos perante um sistema radicalmente diferente do sistema nosso conhecido.


Na verdade, a entrevista funcionou como merao "trampolim" para o nosso objecto de trabalho - a análise da figura dos Administrative Tribunals que de seguida vos tentaremos dar a conhecer.


Sob pena de este não ser o modelo clássico de exposição, esperemos que vos agrade!








O sistema indiano visto por um nativo


OU


Os catorze pontos de Paramjeet






  1. A constituição Indiana é vista como uma guide-line




  2. Subdivide-se em 2 secções principais - de destacar na 1ª secção, os direito individuais.




  3. Ver ainda artigos: 14º - direito à igualdade; 19º - que contém os 7 golden rights; 21º - direito à vida. No que toca ao artigo 21º já foram decididos inúmeros casos; este é, na verdade, um artigo invocado frequentemente contra a administração por ter um ãmbito alargado.




  4. Não há no direito indiano uma "Bill of rights"




  5. Trata-se de um sistema judicial apoiado em case studies




  6. Alusão a um episódio em particular da História indiana: no tempo da Primeira-ministra Indira Ghandi, um período tido como a "fase negra da India", é aprovada uma lei que suspende alguns dos artigos mais importantes da Constituição (18º, 19º, 21º), e surge a questão: como se pode fazer uso de todos os outros direitos garantidos constitucionalmente se não se puder fazer valer o direito à vida, ou de forma mais sucinta, pode este tipo de direitos fundamentais ser suspenso?




  7. Neste sistema de Case Law, são os próprios tribunais que criam leis igualmente vinculativas para o Governo - quando comparado com as leis que emanam do Parlamento




  8. Em 1976 foi criado o "judicial activism", um instituto que permite recurso directo para o Supremo Tribunal num caso pendente que diga respeito a direitos fundamentais




  9. Na verdade, o conceito de direitos fundamentais é tão abrangente que permiite este recurso na grande maioria das decisões. Os artigos que tutelas estas situações são 32º, 226º e 137º. No entanto, também aqui reina o princípio da exaustão dos meios comuns para aceder ao Supremo Tribunal.




  10. Os Administrative Tribunals foram estabelecidos para facilitar, aliviar o trabalho jurisdicional dos tribunais comuns e do próprio sistema judicial. Estes tribunais não analisam direito individuais, não têm autoridade absoluta. São, nas palavras de Param, "small river leading to a big sea - the common system"




  11. Quanto ao sistema de tribunais comuns temos: o Supreme Federal Court; o High Court; e o District Court.




  12. No que respeita ao funcionamento do Supreme Court, este age como um tribunal de recurso e como tribunal de 1ª instância. Quanto ao recurso, há 2 vias: do District Court para o High Court - aqui é necessário um "certificado", uma declaração de que o caso carece de recuso, isto estando em causas menores; já se estamos perante questões substanciais de direito ou interpretação correcta dos factos, temos recurso para o High Court




  13. Uma curiosidade: pode-se interpor acções em qualquer tribunal, já que este transfere o caso para o tribunal competente




  14. Os Administrative Tribunals tratam também de questões não judicial, estão ainda na dependência do governo, não actuando directamente no interesse dos particulares. Na visão de Param, os estes órgãos não são considerados independentes.




Aproximação ao Sistema Judicial Indiano



O Império Britânico na Índia trouxe consigo a introdução e desenvolvimento do sistema de Common Law, no qual o sistema judicial deste país se baseia. De facto a substância do sistema vigente mantém-se quase inalterada desde o século XIX, aquando do domínio britânico - com excepção do Supremo Tribunal, cuja criação data de 1937.



Distinção entre Court e Tribunal



Os Courts correspondem, na verdade, à nossa figura dos tribunais. Na India encontramos:







  • O Supreme Court (funciona como tribunal de recurso, interpreta a constituição e a sua jurisprudência vincula todos os outros tribunais)




  • Os High Courts (actuam sobretudo no âmbito das garantias constitucionais e garantia de direitos fundamentais; são tribunais de 1ª instância e de recurso, a sua jurisdição reporta-se a todos os tribunais do seu ãmbito territorial e asseguram a independência da função administrativa)




  • E os Subordinated Courts (encontram-se no último degrau da hierarquia, estando sujeitos a limitações quanto ao território, ao valor da acção e à sentença)


Os Tribunals, ou órgãos de jurisdição administrativa, são estabelecidos para tratarem de funções jurisdicionais específicas em certas áreas delimitadas. Os CAT (Central Administrative Tribunals) são um exemplo disso em matéria de serviços, mas existem também tribunals em áreas como disputas de seguros e mercados; disputas inter-estados quanto a águas, ou em matéria de recuperação de dívidas. Os tribunals têm ainda poderes para decidirem sobre as suas próprias regras de resolução de conflitos, estando apenas sujeitos à legislação donde retiram a sua autoridade.





Análise da figura dos Administrative Tribunals



Surgimento



Os Central Administrative Tribunals (CAT) foram criados como resultado da emenda à Constituição da Índia efectuada em 1976 (42nd Amendment Act). Esta introduziu o artigo 323-A, que deu poderes ao Parlamento para legislar sobre a adjudicação aos tribunals disputas e queixas respeitantes ao recrutammento e condições de serviço das pessoas empregadas em serviços públicos e postos relacionados com os assuntos da União da Índia ou os seus Estados. Deste modo, seriam retirados aos tribunais civis a resolução de disputas relacionadas com a matéria dos serviços públicos.



Antes deste artigo já existiam tribunals em várias áreas, que eram reconhecidos pela Constituição; porém, não tinham matérias exclusivas, estando sempre sujeitos a recurso jurisdicional para os High Courts pelos artigos 226º e 227º da Constituição.



Segundo um crítico indiano, Dr. Rajeev Dhavan, esta emenda à constituição foi positiva para a construção de um novo sistema judiciário, na medida em que "previu uma estrutura de tribunal e limitou os poderes de revista do High Court". Disse ainda que "no longo prazo, isto poderia constituir o advento de um sistema de tribunais racionalizado sob a superientendência do Supremo Tribunal" que "seria simultaneamente uma adaptação indiana e da common law em geral do sistema francês de direito adminsitrativo".



Jurisdição e competências



Os CAT têm jurisdição apenas em relação à questões de serviço das pessoas em litígio constidas no seu Acto de criação - o Administrative Tribunals Act, 1985 - sendo o tribunal de 1ª instância nestas matérias. Uma característica deste acto é a simplicidade processual, podendo a pessoa lesada aparecer pessoalmente no processo - sem patrocínio judiciário; quanto ao governo, este pode apresentar o seu caso através de funcionários dos seus departamentos ou por funcionários legais.



Dito isto, há porém muitos funcionários públicos não abrangidos na jurisdição destes tribunals. Estes não têm competência para julgar membros das forças armadas, oficiais e funcionários dos Supreme e High Courts, os funcionários legislativos centrais e dos vários Estados, nem os restantes abrangidos pelo Industrial Disputes Act de 1947.



Ao nível territorial, estes tribunals dividem-se em Central Administrative Tribunals, State Administrative Tribunals e Joint Administrative Tribunals. A sua harmonização de competências é feita como se segue:



CAT



- questões de recrutamento de todos os serviços indianos, nomeadamente defesa nacional



- assuntos da união ("affairs of the union")



- a autoridade quanto a questões de serviço e recrutamento respeitantes ao governo e autoridade locais



STATE ADMINISTRATIVE TRIBUNALS



- questões de serviço e recrutamento do Estado ou de qualquer posto civil sujeito a autoridade estatal



-poderes ao nível das autoridades locais



-a sua jurisdição engloba todas as questões excepto as que são da jurisdição dos CAT



JOINT ADMINISTRATIVE TRIBUNALS



-para 2 ou mais Estados



-questões de poderes de punição ("power to punish for contemp")



-poderes equivalentes ao High Court no que respeita à matéria do "contempt of court"





Artigos importantes do Administrative Tribunals Act


Section 14(1) which vests in the Tribunal the jurisdiction of all courts in respect of service matters, says:


Save as otherwise expressly provided in this Act, the Central Admnistrative Tribunal shall exercise, on and from the appointed day, all the jurisdiction, powers and authority exercisable immediately before that day by all courts (except the Supreme Court) in relation to ... service matters.


Section 28(1) which excluded jurisdiction of the courts says:


"On and from the date from which any jurisdiction, powers and athority becomes exercisable under this Act by a Tribunal in relation to service matters concerning members of any service or post, no Court except (a) the Supreme Court, or (b) any Industrial tribunal ... shall have or be entitled to exercise any jurisdiction, powers or authority in relation to such ... service matters"


Organização


Hoje os CAT estão divididos em 17 magistraturas regulares (regular benches), 15 das quais operam nos principais assentos dos High Courts e as restantes duas em Jaipur e Lucknow.


São constituído por um Presidente, um vice-presidente e os membros - os quais provêm tanto do meio judicial como administrativo, de forma a dotar o tribunal de especialização suficiente em ambos os meios. Além disso, o Presidente tem d ser um juiz reformado do High Court, ou um Secretário do Governo da União ou ainda alguém com posição equivalente no Estado há pelo menos 2 anos.


Metas


Tudo isto foi feito com o objectivo de atenuar a pressão sobre os High Courts, e também para que os juízes e membros especialistas em matéria de serviços públicos desenvolvessem nova jurisprudência no assunto.


Estes tribunals têm como meta tratar de forma rápida e pouco dispendiosa os casos em litígio. Deste modo, o Administrative Tribunals Act abriu um novo capítulo na justiça admnistrativa para os funcionários públicos lesados e na reforma da justiça admnistrativa em geral, num sentido democratizante.


Aquando da sua criação, a expectativa era, pois, de que os CAT decidissem de acordo com os objectivos e o espírito da sua criação; porém, tem sido sentido que as disputas entre a administração e os funcionários envolvem muitas vezes questões políticas - sendo que as autoridades, por várias vezes são mais favoráveis ao governo e desta forma o objectivo democratizante é falhado.



Aquilo da Salada Russa


Estamos sem dúvida perante um sistema administrativo particularíssimo, que em parte repousa na figura dos Administrative Tribunals, órgãos que nos aparecem como "tribunais de segunda" - quasi judicial bodies. Destaque aqui quer para o seu elevado grau de especialização - que se acaba por traduzir numa limitação do seu âmbito a meras questões de serviços - quer para a sua falta de parcialidade face ao poder político.


Assim, podemos aperceber-nos que estamos perante um sistema que, apesar das suas raízes britânicas, sofre do "trauma continental" situando-se ainda numa fase de alguma premíscuidade e deficiente concretização do princípio da separação dos poderes.



Mas porque é que este sistema administrativo dava um filme indiano? Fiéis aos criadores desta "private joke", bastamo-nos com uma explicação muito banal: a sua primeira refeição foi um caril indiano - o que não é de admirar já que nasceu na Índia. Se, a mero título de exemplo, o Sr. Sistema Administrativo tivesse jantado uma salada russa tratar-se-ía, sem sombra de dúvida, de um filme.... chinês!



POR FIM, gostaríamos de vos propor o seguinte desafio de comparação com o nosso sistema: perante estes dados, e considerando que já completaou 24 anos de idade, onde pensam que se encontra o nosso Sr. Sistema Administrativo Indiano? Ainda preso numa infância traumática "importada" da França? Ou antes num fenómeno próximo da "delinquência juvenil" que se verificou no seu antepassado Sr. Sistema Administrativo Britânico?



BIBLIOGRAFIA


- Pereira da Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo - Almedina, 2009


-http://www.cat.gov.com/


-http://www.nyulawglobal.org/globalex/India_Legal_research.html - GlobaLex - a guide to India's legal Research and legal System by Dr. Rakesh Kumar Srivastava


-http://india.gov.in/knowindia/adm_tribunals.php


-http://lawcommissionofindia.nic.in/101-169/Report162.pdf


-http://www.supremecourtofindia.nic.in/speeches/speeches_2009/All_India_CAT_conference_1-11-09.pdf



LEGISLAÇÃO


- Central Administrative Tribunals Act, 1985


- Constituição Indiana


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado está regulada pela lei n.º67/2007 de 31 de Dezembro.
Desde logo, é imperativo esclarecermos que o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado não deve ser confundido com o da nsua responsabilidade contratual; na medida em que esta é regida pelo Direito Público, devendo estar consagrada na Lei dos Contratos Públicos, como desde logo refere o Professor Fausto de Quadros.

Anteriormente à lei n.º67/2007 de 31 de Dezembro, a responsabilidade civil extracontratual do Estado encontrava-se regulada no Decreto-Lei m.º 48051 de 21 de Novembro de 1967. Todavia, as normas contidas no já referido diploma, bem como as estabelecidas em outros diplomas legais especiais e no artigo 501º do Código Civil eram de todo insuficientes para garantir o direito à justa indemnização. Considerava-se que o Decreto-Lei n.º 48051 abrangia apenas os actos integrados na função administrativa do Estado, sendo por essa razão inaplicável aos actos integrados na função jurisdicional e na função legislativa.
A nova lei pretende normatizar toda a acção funcional do Estado, com excepção dos danos decorrentes bda privação de liberdade ilegal ou injustificada e de condenação penal injusta.

A responsabilidade civil extracontratual do Estado compreende tanto os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros.
Relativamente ao direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem nos termos do artigo 498º do Código Civil.
Deste modo, o prazo de prescrição é de três anos a contar da data em que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu.

Que entidades estão sujeitas ao presente regime?
- Estado, Regiões Autónomas e demais Pessoas colectivas de direito;
- Pessoas colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade;
- Pessoas singulares: titulares de órgãos, funcionários e agentes.

Parece-nos ainda peremptório referir quanto ao direito de regresso, que o exercício do mesmo pelo Estado contra os titulares de órgãos, funcionários ou agentes responsáveis, nos termos em que se encontra previsto na lei, é obrigatório.

Assim, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas consagrado nos danos na lei 67/2007 contém os danos decorrentes do exercício da função admnistrativa quer por facto ilícito quer pelo risco.

À função admnistrativa, por sua vez, correspondem as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito admnistrativo (artigo 1º, n.º2 da lei n.º 67/2007).
Desta forma, e para concluir, verificamos que as principais alterações na nova lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado são:
1. Responsabilização do agente que tenha provocado o dano;
2. Possibilidade de responsabilizar directamente o agente que tenha provocado o dano;
3. Eliminação de obstáculos formais à concessão de uma indemnização quando exista um dano.

domingo, 15 de novembro de 2009

Curvas e Contra-Curvas do Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas


I. Introdução: Relevância da questão da Responsabilidade Extracontratual
A responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas é um tema de extrema actualidade que considerámos bastante interessante para ser alvo de discussão no nosso blogue. De facto, trata-se de uma questão que tem atravessado um longo caminho de “curvas e conta-curvas” que se torna preemente avaliar.
Até à primeira metade do século XIX defendia-se a tese da irresponsabilidade do Estado face aos danos causados aos particulares e da responsabilidade exclusiva do agente que provocava esses danos.
O movimento constitucionalista do final do século XIX iniciou uma fase de transição, afirmando-se os princípios da legalidade e da separação de poderes que colocavam o Estado em igualdade de condições face aos cidadãos, uma vez que também passava a estar subordinado à lei e ao controlo por um órgão independente. A tese subjectivista da responsabilidade adequava-se à simplicidade das relações sociais nos primeiros tempos do liberalismo, mas passou a não corresponder à ordem instaurada a partir da revolução industrial. A complexidade do novo ambiente tornou necessária a ampliação do conceito de culpa. Afirmam-se como marcos no caminho da adopção da responsabilidade objectiva do Estado o nosso conhecido Caso Blanco (1873) e o Caso Anguet (1911).
Apenas no Estado social as legislações europeias[1] passam a consagrar a responsabilidade administrativa. Quanto ao direito comparado, atenderemos ao regime espanhol em que a responsabilidade extracontratual do Estado ganhou relevância anterior à registada no ordenamento jurídico português.
Em Portugal a responsabilidade extracontratual conheceu maiores dificuldades de afirmação, facto que importa avaliar com detalhe. Porém, actualmente reconhece-se que a concepção de Estado de Direito tem como pilar essencial a responsabilidade civil estadual, estando em causa a concretização de um verdadeiro direito fundamental à indemnização. É neste sentido que a actual Lei 67/2007, de 31 de Dezembro pretende regular a matéria em causa, embora seja possível apontar algumas críticas que analisaremos na conclusão do trabalho.
No século XX e início do século XXI tem-se verificado uma revalorização da acção de responsabilidade civil pública dos países europeus com uma influência indiscutível do direito europeu. Torna-se, portanto, essencial fazer uma breve nota à lógica subjacente ao movimento de “europeaização”[2] em que vivemos.


II. A Responsabilidade Extracontratual no Direito Comparado: Caso Espanhol

A responsabilidade administrativa extracontratual espanhola consagrou-se em Espanha na Cosntituição de 1931, instaurado num momento histórico anterior ao português.
O princípio geral constitucional da responsabilidade patrimonial tem um alcance geral, uma vez que a cláusula compreende todo o tipo de actuações extracontratuais da Administração, sejam elas normativas, jurídicas ou materiais, ou simples inactividades ou omissões.
A reponsabilidade espanhola tem um carácter directo, unitário e objectivo. Em primeiro lugar, o carácter directo traduz-se no facto de os particulares terem direito a ser ressarcidos directamente pela Administração sem necessidade de reclamar ou de identificar previamente a autoridade, funcionário, agente ou empregado público cuja conduta culpável tenha causado o dano. Renconhece-se assim, o direito à integridade patrimonial frente a actuações ou omissões administrativas. Para além disso, a responsabilidade é objectiva, ou seja, independente da ideia de culpa em relação ao dano. A ilicitude do facto danoso administrativo deriva do seu efeito negativo injustificado pelo património do particular, e não da valoração reprovável da sua conduta. A culpa do agente pode gerar a sua própria responsabilidade patrimonial, embora o dever de indemnizar da Administração não dependa da conduta culpável dos seus agentes, mas só do funcionamente culpável dos serviços públicos. Por último, este regime faz parte de um sistema unitário de Direito Administrativo, na medida em que se aplica a todas as administrações públicas, sem excepção e que protege em igualdade todos os sujeitos privados, garantindo um tratamento patrimonial comum entre eles.
A obrigação de indemnizar não se limita aos factos ilícitos, incluindo também o risco, na medida em que quem exerce uma actividade de risco deve comportar as consequências dela resultantes. Compreende-se, ainda, as actuações administrativas que embora lícitas gerem danos ou prejuízos. Entende-se que se origina automaticamente na Admnistração a obrigação do seu directo e principal ressarcimento, sem que seja preciso actuar de forma ilícita. O que não é necessário é que ocorra um comportamento voluntário doloso ou culposo da pessoa ou pessoas que produziram o dano ou o prejuízo. Este ressarcimento dos danos e prejuízos é sempre consequência negativa do acto administrativo, não sendo obrigado por imperativo legal ou outro vínculo jurídico.
Para além da responsabilidade administrativa o ordenamento espanhol consagra também a responsabilidade do Estado-Juizl, correspondente aos danos causados a bens ou direitos do particular por erro judicial e aqueles que sejam consequência do funcionamento anormal dos servisços públicos. No entanto, a mera revogação ou anulação das resoluções judiciais não pressupõe por si só direito à indemnização e não há lugar a indemnização nos casos de força maior. Uma situação peculiar em que há lugar a indemnização ocorre quando o arguido se encontra em prisão preventiva e venha posteriormente a ser absolvido por não se comprovarem os factos alegados. Este é o caso concreto que em Espanha implica com maior frequência a responsabilidade extracontratual por erro judicial.
Prevê-se por fim no ordenamento espanhol, a responsabilidade do Estado-legislador, que não tem ainda uma regulação própria, embora o Supremo Tribunal de Justiça tenha elaborado a tese acerca da responsabilidade por actos legislativos, aplicando-se o regime da responsabilidade administrativa. A sentença do tribunal de 13 de Junho de 2000 estabeleceu que, por definição, o Estado deve reparar os danos e prejuízos concretos e singulares gerados pela aplicação de uma lei contrária à Constituição ou a princípios fundamentais do Estado de Direito.
Com a análise do regime comparado, chegámos à conclusão que a responsabilidade extracontratual do Estado em Espanha tem uma grande aplicação prática. De facto, os tribunais administrativos atribuem indemnizações aos paticulares por danos gerados pelo Estado, abrangendo um vasto leque de actuações, quer sejam lícitas, ilícitas, pelo simples risco de lesão de direitos ou bens dos particulares ou até pela privação injusta da liberdade. Em Portugal, vamos ver que o regime que se instaurou de responsabilidade extracontratual do Estado, tem a mesma base que o regime espanhol, embora talvez por ser mais recente não tenha tanta aplicação prática.


III. Evolução histórica do regime da responsabilidade extracontratual em Portugal

Regime legal até meados dos anos 60

Em Portugal, tal como se verificou na evolução global dos diversos ordenamentos jurídicos, a responsabilidade civil estadual nem sempre esteve prevista.
Inicialmente, pelo contrário, o artigo 2399º do Código de Seabra consagrava a irresponsabilidade do Estado pelos prejuízos causados no exercício da actividade de execução da lei, sendo que o artigo seguinte responsabilizava meramente os funcionários administrativos, pessoalmente, por danos resultantes de actividades ilegais, não havendo garantia administrativa.
Em 1930 procedeu-se à revisão do Código de Seabra e, mediante um aditamento ao artigo 2399º, passou a prever-se a responsabilidade do Estado e das autarquias, solidariamente com os seus funcionários, por actos ilegais por si praticados dentro das respectivas competências.
No artigo 8º, nº 17 da Constituição de 1930 garantiu-se aos cidadãos o “direito de reparação de toda a lesão efectiva”, mas esta garantia esvaziava-se de conteúdo ao remeter para a lei ordinária: “conforme disposer a lei”.
Com o Código Administrativo (1936-1940) estabeleceu-se nos artigos 366º e 367º a responsabilidade das pessoas colectivas públicas de população e território por actos de gestão pública. Trata-se de uma responsabilidade por actos ilegais, estabelecendo o legislador uma presunção de culpa funcional que se cumula com a culpa pessoal.
A elaboração de um princípio de responsabilidade do Estado por actos lícitos ou pelo risco não era, ainda, admitida pela doutrina portuguesa.

Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967

O Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, lançou as bases de uma nova regulamentação em matéria da responsabilidade extra-contratual do Estado, mediante a qual o legislador português abandonou a tese da subjectivização e passou a afirmar a responsabilidade objectiva do Estado. Como afirma Cabral de Moncada, “a objectivação da responsabilidade é, de facto, o cerne do regime que lhe corresponde no Estado Social de hoje. Longe vão os tempos em que, como no artigo 14º da Constituição portuguesa de 1822 apenas se responsabilizavam pessoalmente os funcionários por abuso de poder, noção eminentemente subjectiva”.

O Decreto-Lei nº 48 051 assenta na dicotomia entre actos de gestão privada e actos de gestão pública. Como explicita o Professor Freitas do Amaral: “pelos danos causados no desempenho de actividades de gestão privada, a Administração responde segundo o Direito Civil perante os tribunais judiciais, e pelos danos causados no exercício de actividades de gestão pública, a Administração responde segundo o Direito Administrativo perante os tribunais administrativos”.
Não existe nenhuma definição legal destes conceitos legal, mas é possível estabelecer critérios que os contrapõem. A gestão privada tem como critério a ideia de relação de igualdade. No exercício desta actividade o Estado despe a sua veste de ius imperii e estabelece relações com terceiros num plano de igualdade. Já a gestão pública tem como critérios as ideias de autoridade ou nexo de subordinação e do fim específico a prosseguir. Segundo Marcello Caetano “reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para esse efeito”.
Se as actividades que provocam danos a terceiros se integram na gestão privada, a entidade pública a quem pertence o órgão ou agente que actuou responde segundo as normas do Código Civil, particularmente a do art. 501º. O disposto neste artigo reflecte um significativo avanço relativamente ao direito anterior. De facto, a responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas é ampliada aos danos provocados por órgãos ou por representantes dessas entidades. Para além disso, torna-se evidente a natureza objectiva (sem culpa) da responsabilidade do Estado e demais entidades públicas.
Quanto à responsabilidade extracontratual do Estado por actos de gestão pública regula o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 48 051. Com este regime as actuações ilícitas e culposas envolvem uma responsabilidade da pessoa colectiva pública apenas quando o dano resulta do exercício das suas funções e por causa delas.

No Decreto-Lei em análise estatui-se um princípio geral de indemnização contrário à legislação de direito civil, expresso no artigo 562º do Código Civil. Enquanto na lei civil o princípio geral inerente à obrigação de indemnizar é o da restauração natural, o diploma em causa consagra o princípio da reparação pecuniária. Assim, enquanto a lei civil estabelece o dever de reconstituir a situação anterior à lesão, a lei administrativa apenas impõe o dever de pagar uma determinada quantia em dinheiro ao lesado.

O legislador do Decreto-Lei n.º 48 051 não se limitou a regular a responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas por fatos ilícitos e culposos. De facto, consagrou pela primeira vez, com carácter geral, duas modalidades de responsabilidade objectiva: a responsabilidade pelo risco e a responsabilidade por actos ilícitos. Até aqui só existiam quando previstas na lei, ou seja, excepcionalmente.

A responsabilidade por factos ilícitos e culposos ocorre com a verificação de quatro pressupostos: facto ilícito, culpa, prejuízo e nexo de causalidade.
O facto ilícito tanto pode consistir num acto jurídico, em regra um acto administrativo, como num facto material, normalmente resultante da acção de agentes administrativos. O requisito da culpa pode envolver não só o dolo como também a negligência. A apreciação da culpa nos termos do artigo 4º é feita de acordo com o artigo 489º do Código Civil. Deste modo, a culpa atende à “diligência de um bom pai de família”, o que implica a análise do comportamento em termos de um homem médio e não de um órgão ou agente administrativo médio. Quanto ao prejuízo segue-se o entendimento de Marcello Caetano que considera que estão em causa tanto os danos materiais como os danos morais. O nexo de causalidade implica a conexão de causa-efeito entre o facto ilícito e culposo e o dano de terceiro que importa ressarcir.

Passemos à análise da responsabilidade pelo risco ou por factos causais, prevista no artigo 8º do Decreto-Lei n.º 48 051. Trata-se de um imperativo de justiça que quem retira vantagem de uma actividade deva correr os riscos a ela inerente. Refira-se, por exemplo, os danos provenientes de um acidente na execução de obras públicas.
A verificação desta modalidade de responsabilidade depende de dois requisitos: que os danos a indemnizar sejam especiais e anormais; e que esses danos resultem do “funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza”.

Abordemos, por fim, a responsabilidade por factos lícitos, estatuída no artigo 9º do Decreto-Lei n.º 48 051. Neste caso, a reparação não está ligada à antijuricidade de uma actuação nem ao risco inerente a uma actividade. A responsabilidade pelo dano causado licitamente baseia-se, segundo Marcello Caetano, na igualdade de repartição dos encargos públicos.
A Administração responde por dano causado licitamente verificados dois requisitos: a existência de um acto administrativo legal ou uma operação material lícita; e a verificação de um dano especial e anormal.

É possível, em primeira linha, apontar algumas falhas a este regime. Desde logo, a omissão ilícita não mereceu a devida atenção do legislador. Além disso, não é feita referência áquilo que a jurisprudência francesa do Conseil d’État designou por faute du service, ou culpa em serviço. Em causa estão situações que podem dar origem a danos em consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo. Acresce, ainda, que só o dano sentido na esfera jurídica de um indivíduo ou de um número restrito de indivíduos é passível de reparação, uma vez que se prevê apenas um dano singular ou especial.

Para além disso, o facto deste diploma ter na sua base a distinção entre gestão pública e gestão privada, é nas palavras de Vasco Pereira da Silva uma dicotomia “ilógica” e “injusta”. “Ilógica”, na medida em que tem por base uma ideia autoritária de Administração, regulada por um conjunto de normas “exorbitantes” e que intervém mediante actos de poder. Estas afirmações estão alheadas da realidade em que, de facto, o Estado passa a actuar não apenas através de actos, mas mediante uma grande variedade de meios, muitos deles favoráveis aos cidadãos. “Injusta”, uma vez que a ausência de critérios lógicos seguros de distinção entre gestão pública e gestão privada gera dúvidas quanto ao direito aplicável e ao tribunal competente, podendo mesmo o conflito negativo de jurisdição gerar uma denegação de justiça.

Constituição da República Portuguesa de 1976

As críticas ao Decreto-Lei 48 051 ganham relevo com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976[3] que vem atribuir maior amplitude à responsabilidade civil do Estado. A partir desta data, passou a prever-se constitucionalmente a reponsabilidade das entidades públicas (artigo 21º, n.º 1, actual artigo 22º), a responsabilidade dos agentes e funcionários do Estado (artigo 271º) e o direito à indemnização dos cidadãos por danos sofridos (artigo 27º, nº 5 e artigo 21º, nº 2, actual artigo 29º, nº 6). Face à concepção de Estado de Direito é posta em relevo a desadequação do diploma em vigor, havendo mesmo quem considerasse a existência de uma inconstitucionalidade superveniente.

O artigo 22º CRP é aquele que demonstra com maior impacto a inconformidade da legislação infra-constitucional. Nele estatui-se um verdadeiro direito fundamental à reparação de danos, direito esse de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, à reparação dos danos. Amplia-se a responsabilidade directa do Estado, que passa a responder por qualquer dano provocado em direitos fundamentais dos particulares. Embora não seja expresso, conclui-se que os danos podem ser gerados a qualquer título, isto é, não apenas pelo exercício da função administrativa, mas também da legislativa e judicial. A responsabilidade do Estado aqui prevista é solidária com os órgãos, funcionários ou agentes. Toda esta lógica contraria a acima descrita quanto ao Decreto-Lei 48 051. Em síntese, este diploma responsabilizava o acto de gestão pública ilícito praticado apenas no exercício da função administrativa e a solidadriedade é bastante mais limitada.
A manutenção deste regime em vigor causou embaraços que a doutrina e a jurisprudência fizeram um esforço por superar. Autores como Gomes Canotilho, Vital Moreira e Jorge Miranda, sublinharam que o DL n.º 48 051 se deveria considerar em vigor apenas na medida em que não colidisse com a Constituição de 1976 e os preceitos e princípios nela consagrados.

Reforma do Contencioso administrativo de 2004

Com a reforma do Contencioso administrativo que entrou em vigor em 2004, deu-se um primeiro passo evolutivo na matéria de responsabilidade civil estadual, mediante a consagação da unidade jurisdicional. O ordenamento jurídico português passa a delimitar a competência dos tribunais administrativos e fiscais em razão da natureza das relações jurídicas em causa, sendo irrelevante a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada para determinar a jurisdição competente. Esta nova lógica advém do artigo 212º, nº 3 da CRP e do artigo 1º, nº 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[4].
De acordo com as alíneas g), h) e i, do nº 1, do artigo 4º do ETAF resulta inequívoco o regime de unidade jurisdicional referente ao contencioso de toda a responsabilidade civil pública, que passa a ser da competência dos tribunais administrativos. A alínea g) desta norma compreende a responsabilidade da Administração por actos praticados qualquer que seja a função por ela praticada. Assim, para efeitos processuais classifica-se como administrativa qualquer relação de responsabilidade civil pública, independentemente do órgão e do poder em que ele se encontra inserido. Por seu turno, na alínea h) faz-se referência à competência da jurisdição administrativa face à globalidade do contencioso da responsabilidade civil pública, considerando os danos causados por titulares de órgão, funcionários, agentes e demais servidores públicos. Por fim, a alínea i) alarga o regime de responsabilidade extracontratual não só aos casos de Administração pública sob forma privada, mas especialmente aos casos em que as entidades privadas colaboram com a Administração no exercício da função administrativa.
Todavia, apesar da importante inovação da unidade jurisdicional, manteve-se uma dualidade legislativa, não tendo a sido produzidas alterações no direito substantivo. Este facto conduziu à manutenção da necessidade de determinar o regime jurídico substantivo aplicável mediante a existência de acto de gestão pública ou um acto de gestão privada, o que parece ser um entrave à evolução que se começava a fazer sentir. Torana-se, então, preemente proceder à alteração do Decreto-Lei 48 051 e adaptação do regime substantivo à lógica sistemática do restante ordenamento jurídico.

A manifesta insuficiência do regime do DL n.º 48 051 face à lógica subjacente à reforma, fez com que Fausto de Quadros formulasse um conjunto de propostas actualizantes da responsabilidade do Estado administração. Segundo este Professor o artigo 22º da CRP é uma cláusula aberta, contemplando desde logo as tradicionais responsablidades do Estado-Legislador, do Estado-Administrador e do Estado-Juiz que deveriam ser concretizadas numa lei especial. Para além destas seria também de atender à responsabilidade por exercício de outras funções, como por exemplo da função política ou de condução das relações externas do Estado. Esta proposta vai ser tida em conta pelo legislador aquando da produção da Lei n.º 67/2007. Porém, alguns dos aspectos referidos pelo Autor não conhecem concretização legislativa, como seja a lógica de inversão do ónus da prova.


IV. Sistema actual: Lei n.º 67/2007 actualizada pela Lei n.º 31/2008

Enquadramento

O Decreto-Lei n.º 48 051 datava dos anos 60 e por isso impunha normas anteriores às mudanças jurídicas introduzidas pela Constituição, a reforma e as próprias directivas da União Europeia, aspecto que iremos analisar no ponto seguinte. Consequentemente não eram já normas normas que se coadunassem com a actual realidade do universo da responsabilidade extracontratual. Consciente desta desadequação, o legislador português, inspirado pela discussão doutrinal, iniciou um processo de tentativa de alteração do regime vigente. Desde 2001 que foram feitas várias propostas, mas só em 2006 é que foi aporvada por unanimidade na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 56/X. O veto político do Presidente da República exigiu uma reapreciação pela Assembleia da República da referida proposta que deu posteriormente origem à Lei n.º 67/2007.

Embora a expectativa face a esta lei fosse a de estabelecer um regime estável, o facto é que decorridos menos de seis meses sobre o início da sua vigência, este diploma sofreu uma alteração introduzida pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho. Com esta lei altera-se, com efeitos retroactivos, o artigo 7º, nº 2 do regime anexo à Lei n.º 67/2007, em matéria de responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa. Esta alteração resulta do desfecho da segunda acção por incumprimento intentada pela Comissão contra Portugal no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, relacionada com a transposição da Directiva “recursos”.

Análise desenvolvida do novo regime

A Lei n.º 67/2007 vem finalmente estabelecer unidade legislativa quanto à matéria da responsabilidade extracontratual, pondo em prática relativamente ao sistema substantivo aquilo que já tinha ocorrido no plano processual. Analisaremos este diploma de acordo com a estrutura em que se encontra organizado, reconhecendo alguns traços do regime legal revogado, mas sublinhando os traços inovadores.

No Capítulo I é feita referência às “Disposições Gerais”. É no artigo 1º que se procede à concretização prática do princípio geral de responsabilidade patrimonial das entidades públicas, consagrado no artigo 22º CRP. Nesta disposiçõa verifica-se uma verdadeira concretização do que foi acima expoto quanto às alíneas g), h) e i, do nº1, do artigo 4º do ETAF.
No artigo 2º estabelece-se a definição de danos ou encargos especiais e anormais, sendo que os primeiros incidem apenas sobre uma pessoa ou grupo de pessoas, enquanto que os segundos ultrapassam os custos da própria sociedade. No Decreto-Lei n.º 48 051 esta distinção operava no âmbito da responsabilidade pelo risco, enquanto que na lei actual esta dupla limitação aplica-se apenas no quadro da indemnização pelo sacrifício.
O artigo 3º é uma disposição geral relativa à obrigação de indemnizar, devendo ser conjugada com as regras especiais deste diploma e as regras do Código Civil do artigo 562º e seguintes. Ao contrário do que acontecia no Decreto-Lei n.º 48 051, o princípio geral quanto à indemnização passa a ser o da reparação natural, exigindo-se a reposição das coisas no estado em que estariam se não tivesse ocorrido o dano. Desta forma, a indemnização em dinheiro ganha um carácter subsidiário.
O disposto no artigo 4º determina o princípio da culpabilidade ou de co-responsabilidade resultante de facto imputável ao próprio lesado, atribuindo ao tribunal a faculdade de conceder, reduzir ou excluir a indemnização com base na gravidade das culpas concorrentes de ambas as partes.
A prescrição está prevista no artigo 5º, sendo feita uma remissão para o artigo 498º do Código Civil. Já o exercício do direito de regresso nas relações internas, estatuído no artigo 6º, adquire carácter obrigatório nas situações previstas no presente diploma.

O Capítulo II trata da “Responsabilidade Civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa”.
A secção I regula a “Responsabilidade por facto ilícito”. Neste ponto verificam-se várias alterações. No artigo 7º determina-se a responsabilidade exclusiva do ente público relativamente a danos cometidos com culpa leve, sendo este um termo novo. Por concretização da Directiva n.º 89/665/CEE, impõe-se no nº 2 a obrigação de atribuir indemnizações por violação do direito comunitário no âmbito do procedeminto pré-contratual de direito público.
A previsão do artigo 8º é a da responsabilidade solidária do Estado e demais entidades públicas com os titulares de órgãos, funcionários ou agentes quando o dano resulte de acções ilícitas cometidas com dolo ou culpa grave no exercício das suas funções e por causa desse exercício. O objectivo da solidariedade é a solvidade da dívida face ao lesado, embora implique o direito de regresso do Estado.
O artigo 9º atribui um conceito mais abrangente de ilicitude, fazendo, pela primeira vez, referência expressa a danos resultantes de não só de acções, como também de omissões ilícitas. Para além disso, passa a incluir os danos resultantes do funcionamento anormal dos seus serviços, ou seja, faute du service. Verifica-se, ainda, a interconexão entre a violação de normas e princípios com a ofensa de direitos ou interesses de outrém, sendo essencial o desvalor da conduta quanto ao resultado.
A apreciação da culpa estatuída no artigo 10º, já não ocorre de acordo com o Código Civil, mas sim por um novo critério, sendo que o que releva é a “diligência e zelo que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor”. Assim, o novo conceito de culpa não tem já como padrão de referência a diligência exigida ao bom pai de família, mas sim ao titular médio de órgão ou funcionário médio.
Nesta matéria matém-se a aplicação da regra do artigo 497º do Código Civil quando existe uma pluralidade de responsáveis.
A Secção II estatui a “Responsabilidade pelo risco” apenas no artigo 11º. A primeira inovação face ao regime revogado é a da exclusão do limite indemnizatório por exigência de prejuízos especiais e anormais. A segunda reflecte-se na relevância prática atribuída ao facto culposo de terceiro. Quando um facto culposo de terceiro concorra para a produção ou agravamento dos danos, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do direito de regresso. Mantém-se intacta a referência aos danos decorrentes de serviços, coisas e actividades especialmente perigosas como fontes da responsabilidade pelo risco, salvo se se provar que houve força maior ou culpa do lesado.

No Capítulo III prevê-se a “Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional”, sendo esta matéria, ela própria, uma inovação de grande relevo, em consonância com o princípio consagrado pelo artigo 22º da Constituição.
No artigo 12º estende-se ao domínio da administração da justiça o regime da responsabilidade civil da Administração. Porém, especificam-se duas ressalvas nas quais a lei desenvolve um regime próprio: o erro judiciário e a matéria relativa aos magistrados judiciais e do Ministério Público. Ainda nesta norma refere-se o princípio da razoabilidade da duração do processo, igualmente estatuído no artigo 20º, nº 1 da CRP, no artigo 6º da Convenção dos Direitos do Homem e no artigo 2º, nº 1 do CPTA. A indemnização visa ressarcir as consequências económicas negativas que ocorrem na esfera jurídica dos particulares mediante a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva prevista no artigo 268º, nº 4 da CRP.
O erro judiciário encontra-se regulado no artigo 13º. A responsabilidade por erro judiciário estipula que o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdiciais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. É possível enunciar, a título de exemplo, a indemnização por privação da liberdade (artigo 27º, nº 5 CRP) e a indemnização por condenação penal injusta (artigo 29º, nº 6 CRP). O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
A regulamentação da responsabilidade dos magistrados encontra-se no artigo 14º, prevendo-se que estes não podem ser directamente responsabilizados pelos actos que pratiquem no exercício da respectiva função, sem prejuízo do direito de regresso do estado quando haja dolo ou culpa grave. Esta solução justifica-se pelo princípio da irresponsabilidade do juiz estatuído no artigo 216º, nº 2 da CRP. Este princípio significa que os juízes, enquanto titulares de órgão de soberania, não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, sob pena de poderem encontrar-se sujeitos a restrições ilegítimas face ao seu dever de julgar. O exercício do direito de regresso sobre os magistrados está condicionado a uma prévia decisão do órgão competente para o exercício do poder disciplinar que o poderá adoptar a título oficioso ou por iniciativa do Ministério de Justiça.

O Capítulo IV refere-se à “Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função político-administrativa” regulada apenas no artigo 15º, sendo esta consagração mais uma vez elemento da inovação. Nesta norma estabelece-se a responsabilidade do Estado e das Regiões Autónomas pelos danos anormais que causarem aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
A função legislativa aparece aqui intimamente relacionada com a acção política. Porém, é de notar que os deputados não podem ser responsabilizados pela sua intervenção no processo legislativo quando se reconduza à mera formulação de votos ou opiniões[5].
A norma em causa prevê no seu nº 1 a responsabilidade por actos desconformes à CRP, ao direito internacional, ao direito comunitário ou a acto legislativo de valor reforçado. Para além disso, estatui-se nos números 3 e 5 a responsabilidade por omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais. Para tanto, é necessária a condição de prévia verificação de inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional. O nº 4 permite avaliar a responsabilidade atendendo às circunstâncias do caso concreto. A última novidade que resulta do nº 6 é a possibilidade de fixar equitativamente a obrigação de indemnizar em montante inferior quando os lesados forem em tal número que, por razões de interesse público, se justifique a limitação do âmbito daquela obrigação de indemnizar.

O Capítulo V do diploma em análise refere a “Indemnização pelo sacrifício”. Esta indemnização reporta-se à imposição de encargos ou danos especiais ou anormais causados por razões de interesse público e independentemente da função do Estado em causa. Para o cálculo da indemnização deve atender-se ao grau de afectação do conteúdo substancial do conteúdo ou interesse violado ou sacrificado. O regime ora consagrado aproxima-se e retoma, em parte, o disposto no artigo 9º do Decreto-Lei n.º 48.051.

Analisado com todo o pormenor o regime jurídico actualmente em vigor, resta considerar a influência do Direito Europeu na sua formação e apresentar-lhe algumas críticas, embora se tenha sempre presente a importância desta regulamentação.


V. Breve abordagem da questão à luz do direito europeu

Portugal, tal como qualquer outro Estado membro da União Europeia, encontra-se vinculado à aplicação do princípio comunitário da responsabilidade civil extracontratual por incumprimento. Esta responsabilidade existe quando se verifique uma situação de incumprimento estadual e estiverem preenchidos os requisitos cumulativos fixados pela Jurisprudência do Tribunal de Justiça. São, no entanto, conhecidos poucos casos de responsabilidade do Estado português por incumprimento do Direito da União Europeia. Os casos existentes são quase todos relativos à função legislativa, por incorrecta transposição de directivas ou omissões legislativas.
Não obstante a relevância do princípio da tutela jurisdicional efectiva e o dever, por parte dos Estados membros, de garantir ao particular o direito a um recurso efectivo, verificam-se algumas falhas. Na prática, a garantia de efectivação de um direito decorrente da Ordem Jurídica comunitária e a possibilidade de reparar a violação do Direito Comunitário por vigência de uma lei interna com ele desconforme são insuficientes.
O princípio da responsabilidade dos Estados membros por incumprimento do Direito Comunitário não nasceu com os Tratados, mas sim da jurisprudência criadora do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Desta forma, visa-se tutelar os direitos que os particulares podem retirar do Direito Comunitário em caso de incumprimento estadual e, sobretudo, quando não podem fazer-se valer do princípio do efeito directo vertical. Este princípio surge precisamente para não deixar sem tutela os particulares num caso de incumprimento por falta de transposição de uma directiva comunitária. Sem transposição, estas normas não podiam ser invocadas pelos particulares contra o Estado no tribunal nacional competente. Face a esta situação é possível recorrer ao Tribunal Eurpeu mediante o efeito directo vertical.
O princípio da responsabilidade dos Estados membros por incumprimento do Direito Comunitário e respectivos requisitos é consequência do caso Francovich, sendo objecto de desenvolvimento em acórdãos posteriores. Neste acórdão, o tribunal de Justiça não só afirmou que o princípio em causa é inerente ao sistema do tratado como afirmou ainda que o direito à reparação tem o seu fundamento directo no direito comunitário. Além disso, o tribunal afirmou que os requisitos da responsabilidade do Estado membro por incumprimento referem-se essencialmente ao facto da directiva atribuir direitos aos particulares. O conteúdo destes direitos pode ser identificado com base nas disposições da directiva e a existência de um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o dano sofrido pelas pessoas lesadas.
Maria José Mesquita considera que a Lei nº 67/72007, que introduziu o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades públicas, nasceu desconforme com o Direiro da União Europeia, em violação quer do princípio da lealdade comunitária, na sua vertente negativa, quer do princípio do primado, quanto ao seu efeito “bloqueador” ao impedir a formação válida de novos actos legislativos nacionais, na medida em que sejam incompatíveis com normas comunitárias. Esta desconformidade manifesta-se pelos danos causados no exercício da função administrativa, na função jurisdicional e na função político-legislativa.
Quanto à responsabilidade do Estado por incumprimento decorrente do exercício da função administrativa, a alteração ao artigo 7º número 2 pela Lei de 31/2008, veio criar uma incoerêncoa estrutural quanto à articulação entre o novo regime e o Direito da União Europeia. Esta alteração parece pressupor que o princípio comunitário da responsabilidade estadual por incumprimento, apenas teria aplicação no caso previsto no número 2 do artigo 7º, não tendo aplicação nos demais casos de responsabilidade estadual. Pelo contrário, este princípio tem plena aplicação relativamente à actividade de todas as funções do Estado. A alteração registada gera uma situação de incerteza jurídica quanto ao teor do regime comunitário da responsabilidade aplicável, isto por contemplar uma remissão genérica para os requisitos fixados no Direito Comunitário.
Em relação à responsabilidade no exercício da função jurisdicional, a desconformidade consiste na exigência de prévia revogação de decisão danosa pela jurisdição competente, enquanto fundamento do pedido de indemnização decorrente de responsabilidade por erro judiciário. Isto porque os requisitos comunitários fixados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça são suficiêntes para instituir em benefício dos particulares um direito à reparação.
Em relação à desconformidade do regime da responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função política-legislativa pode apontar-se, em primeiro lugar, a ausência da referência expressa à responsabilidade do Estado por omissão de actos legislativos de transposição ou execução de actos da União Europeia. Em segundo lugar, é de apontar a fixação do carácter anormal do dano enquanto requisito da responsabilidade e da obrigação de indemnizar.
Para superar estes incumprimentos, vários são os meios existentes na ordem jurídica comunitária para garantir a aplicação do Direito Comunitário, bem como aferir e sancionar tal incumprimento, como a apresentação de uma queixa à Comissão ou a instauração de um processo por incumprimento comum pela Comissão ou outro Estado membro.

VI. Análise crítica

Em conclusão, podem ser apresentadas algumas críticas ao novo regime de responsabilidade extracontratual do Estado.
No entender de Vasco Pereira da Silva, a Lei de 67/2007, alterada pela Lei 31/2008 ficou aquém das expectativas, por duas grandes razões. A primeira diz respeito ao facto de o artigo 1º, nº 1 se aplicar aos “danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa”, harmonizando o regime substantivo da responsabilidade civil com o regime jurisdicional. Embora na teoria isto parecesse o mais correcto de acordo com a respectiva reforma do contencioso administrativo, na prática não funciona bem. Relativamente à segunda crítica, afirma-se que a dualidades legislativa não põe termo à distinção entre gestão pública e gestão privada, que há muito não faz sentido. O artigo 1º, nº 2 da Lei 67/2007 diz que “correspondem ao exercício da função admistrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou regulado por disposições ou princípio de Direito administrativo”. A referência aos princípios de Direito Administrativo, faz corresponder a toda a função administrativa, enquanto que a expressão “prerrogativas de poder público” , parece tentar demostrar uma distinção entre o regime de gestão pública e o regime de gestão privada.
Também no entender de Maria José Mesquita o novo regime apresenta falhas, tais como o não acolhimento do regime de execução de sentença para pagamento de quantia certa consagrada congrado no artigo 170º, nº 2 do CPTA; a previsão da concessão de indemnização por violação de norma do procedimento de formação dos contratos referidos no artigo 100º CPTA, excluíndo outros relevantes; a pouca clareza direito de regresso sobre os magistrados; a dependência de prévia verificação da inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional para que seja possível a responsabilidade por omissão de providências legislativas. Tal pode dificultar o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais disposto no artigo 20º CRP.
Outra crítica relevante levantada por esta Autora, diz respeito ao facto de a Lei nº 67/2007 não prestar a atenção devida ao Direito da União Europeia. Em termos materiais, confere ao princípio da responsabilidade extracontratual do Estado um âmbito mais reduzido do que o da Direito da União Europeia. Em termos processuais, dificulta a efectivação do princípio e a obtenção da indemnização através dos tribunais estaduais competentes.
Em nossa opinião, embora a aprovação deste regime seja um marco importante de tutela dos particlares, as curvas e contra-curvas deste caminho tornaram o percurso muito mais longo do que o necessário. Apontamos como elemento negativo o desrespeite pelo Estado de Direito espelhado no interminável período de tempo sem regulamentação específica e actual da responsabilidade civil extracontratual no Estado Português, ao invés do exemplo espanhol.

VII. Bibliografia

- AMARAL, Freitas do, “Direito Administrativo”, volume III, lições policopiadas, Lisboa.
- CADILHA, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas - Anotado”, Coimbra Editora, 2008.
- GARCIA, Maria da Glória Ferreira Pinto Dias “A Responsabilidade civil Estado e demais pessoas colectivas públicas” , Conselho Económico e social, Lisboa, 1997.
- LECHUCOS, Javier Jimenez, “La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos en el Derecho Español”, Monografias Jurídicas, 1ª edição, 1999.
- MAYOL, Vicent Garrido, “La responsabilidad Patrimonial del Estado”, Tirant Monografias, 1ª edição, Valencia, 2004
- MESQUITA, Maria José Rangel de, “O Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais entidades públicas e o Direito da União Europeia”, Almedina, 2009.
- MONCADA, Luís Cabral, “A Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas”, in Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano, 2006.
- MOUZINHO, André, “O novo Regime de responsabilidade civil Extracontratual do Estado”, Compilações doutrinais Verbo Jurídico, 2008.
- QUADROS, Fausto, Colóquio “A Responsabilidade civil extracontratual do Estado”, trabalhos preparatórios da Reforma, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Coimbra Editora, 2001.
- SILVA, Vasco Preira da, “O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2ª edição, 2009.
[1] Na Alemanha com a Constituição de Weimar de 1919, nos E.U.A. com o Federal Torts Claims Act de 1946, em Inglaterra com o Crown Proceedings Act de 1947 e em França por via jurisprudencial.
[2] Nas palavras de Vasco Pereira da Silva.
[3] A partir de agora referida mediante a sigla CRP.
[4] A partir de agora referido mediante a sigla ETAF.
[5] Artigo 157º CRP e artigo. 10º do Estatuto dos deputados (Lei 34/87).

domingo, 8 de novembro de 2009

Insólitos do Contencioso Administrativo: o patrocínio judiciário




Desta vez falamo-vos de um caso de conflito de jurisdição muito particular.

Como sabemos, um conflito de jurisdição (arts.115º nº1 e 116º CPC) deve ser levado a um Tribunal de Conflitos (art.107º CPC), que determinará qual o tribunal competente, tanto para conhecer da questão principal, como das questões incidentais (art.96º CPC), sendo que os tribunais judiciais têm uma competência residual (art.66º CPC), ao passo que os tribunais administrativos e fiscais têm uma competência delimitada pela positiva (arts. 1º e 4º ETAF). Sabemos também que o Tribunal de Conflitos é constituído por juízes do STJ e o presidente do STA é também presidente deste tribunal.

Se “Em processos da competência dos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de advogado” (art.11º nº1 CPTA) e o mesmo acontece na maioria dos processos da competência dos tribunais comuns (art.32º CPC), como é possível que a resolução de um conflito de jurisdição gire em torno do significado que o legislador terá querido atribuir à utilização de linhas ponteadas num diploma que vêm revogar parcialmente um outro diploma?

Expliquemos um pouco melhor. As recorrentes, pretendo que o caso de reversão da expropriação de que foram alvo pertencesse aos tribunais judiciais, alegavam que o legislador ao utilizar linhas ponteadas no art. 1° da Lei n° 4-A/2003, de 19 de Fevereiro “(…) só pode ter querido eliminar o conteúdo das normas que fez substituir por essas linhas ponteadas;”, pelo que, “A revogação da norma revogatória antes da entrada em vigor desta, mantendo os seus dispositivos, mas esvaziando-os de todo o seu conteúdo, traduz uma vontade e uma intenção claras do legislador de recuperar a lei anterior, ou seja, de repristiná-la.”. Por seu lado, “Curiosa, mas sugestivamente, a ilustre Magistrada do Ministério Público (ver fls. 56) não deduziu qualquer oposição contra a pretensão das ora recorrentes.”.

Tais alegações fazem inevitavelmente surgir questões sobre os intervenientes neste processo: que advogados e magistrados são estes que consideram tal argumentação válida? Que advogados não são capazes de dizer aos seus clientes que não vale a pena recorrer ad eternum num caso como este?

Enfim, os casos que chegam aos Tribunais de Conflitos…

Se ficaram curiosos e têm fundadas dúvidas a cerca da veracidade de mais esta extravagância do sistema português, sintam-se desde já convidados a ver o acórdão em http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e4ed118628a7451980257194003f128b?OpenDocument



"Contencioso Administrativo Angolano" (Comparação com o Sistema Português)


A guerra civil de 27 anos causou grandes danos às instituições políticas e sociais de Angola. As condições de vida quotidiana em todo o país e especialmente em Luanda (que tem uma população de cerca de 4 milhões, embora algumas estimativas não oficiais apontem para um número muito superior) espelham o colapso das infra-estruturas administrativas bem como de muitas instituições sociais.
Em Angola existem apenas 150 juízes para uma população estimada em 15 milhões de habitantes, de acordo com dados da Ordem dos Advogados angolana. Existem tribunais só em 12 dos mais de 140 municípios do país. O Supremo Tribunal serve como tribunal de apelação, e o Tribunal Constitucional é o órgão supremo da jurisdição constitucional, que teve a sua Lei Orgânica aprovada pela Lei n.° 2/08, de 17 de Junho.
Actualmente, o poder político em Angola está centrado na Presidência e Governo. O ramo executivo do governo é composto pelo presidente José Eduardo dos Santos, pelo primeiro-ministro Paulo Kassoma e pelo Conselho de Ministros.
Relativamente ao seu sistema legal, a Lei Constitucional de 1992 estabelece as linhas gerais da estrutura do governo e enquadra os direitos e deveres dos cidadãos. Este sistema baseia-se no sistema jurídico português e na lei do costume, mas este é caracterizado pela sua fragilidade e fragmentação.
Quanto á actividade Administrativa, a abordagem sobre o processo de reforma administrativa em Angola caracteriza-se inicialmente pelo sistema de organização administrativa durante o período ‘monolítico’, uma fase singular da administração pública marcada pelo facto de não haver distinção clara entre sector público administrativo, sector público empresarial e sector privado. A reforma administrativa Angolana iniciou-se no ano de 1990, mas o primeiro programa de reforma foi aprovado apenas em 2000. Foram precisos 10 anos para a realização de um desejo já antigo.
O grande marco para a justiça Administrativa surge com o período da entrada em vigor da Lei Constitucional vigente na denominada 2ªRepública, pois nesta é introduzida uma inovação que diz respeito ao Princípio da Legalidade. Através deste introduz-se a ideia de que todos os órgãos de Estado e a própria Administração Pública se devem reger pela Legalidade, isto é, pelas normas jurídicas que regem a sua actuação (Art.54º).
É ainda regulamentada uma vasta lista de direitos e interesses legalmente protegidos, como é o caso do DL nº 4ª/96 de 5 de Abril, relativo à regulação do Contencioso Administrativo, vertente de impugnação de actos realizados pela Administração Pública.

Uma das grandes inovações a nível do contencioso administrativo, é a criação de Tribunais Administrativos, com autonomia e estatuto diferentes dos Tribunais Comuns.

Assim sendo fazendo uma análise crítica quanto ao Contencioso Administrativo Angolano, verificamos que este sistema se assemelha em alguns aspectos basilares, ao Contencioso Administrativo Português. Mas tendo em conta algumas vicissitudes demonstradas, este possuí alguns problemas de efectivação das normas constantes tanto na Lei fundamental de 1992 como no DL nº 4ª/96 de 5 de Abril.

sábado, 7 de novembro de 2009

Insólitos do Contencioso Administrativo: O Caso Angolano




Evolução do contencioso administrativo angolano

Para de iniciarmos esta viagem pelo contencioso angolano temos que sentar no divã de psicanálise os dois momentos traumáticos da história política de Angola, ou seja, a primeira e a segunda repúblicas, de maneira a compreender como cada uma contribuiu para a criação de um sistema de justiça administrativa, e como despoletaram na sua personalidade algumas características bizarras...
A 1ª República foi marcada por um profundo vazio no que toca à justiça administrativa. A Constituição angolana não a refere uma única vez, nem tão pouco consagra o princípio da separação de poderes, mas, mesmo assim, há dois momentos que se podem considerar a proto-história do contencioso angolano no seu plano organizatório: aprova-se a Lei do Sistema Unificado de Justiça, Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro, que estabeleceu um novo sistema judicial e integrado, e a lei que define quais os tribunais com competência para questões que digam respeito à Administração Pública, Lei nº 17/90, de 20 Outubro. Um ano mais tarde, uma lei de revisão constitucional, Lei nº 12/91, de 6 de Maio veio prever que os tribunais decidem a legalidade dos actos administrativos, o que vem efectivar o seu plano material.
Este défice de atenção conduz a uma Administração Pública de funcionamento quase ilimitado...
É na 2ª República que nasce a Lei Constitucional vigente, e com ela nascem três características deterministas deste contencioso e outras quantas contradições. Nada nos espanta, basta comparar com o fenómeno turbulento que é o da adolescência da raça humana.
Assim, a Administração Pública passa a subordinar-se ao princípio da legalidade, consagram-se direitos fundamentais dos cidadãos, e prevê-se a criação de Tribunais Administrativos, autonomizados dos comuns
Repare-se que o Sistema Unificado de Justiça de que tanto se fala, não comporta verdadeira unificação, o que existe realmente é um sistema de múltiplas jurisdições e de unidade material mitigada. Complicado? Expliquemos então, a Lei Constitucional de 92 consagra um monismo de judicatura e a solução encontrada para fundamentar a integração da jurisdição administrativa nos tribunais comuns é a da sua falsa especialização, “tentando” ir ao encontro do ensinamento de Hertegen “julgar a administração é especifico”. Veja-se a ambiguidade presente nos nomes, Sala do Cível e Administrativo, nos Tribunais Provinciais, e Câmara do Cível e Administrativo no Tribunal Supremo, e nas questões controvertidas que são apreciadas por juízes da jurisdição ordinária comum. Mas não se assustem, esta designação legal ambígua vai ser superada por uma “evolução nominal” bem mais esclarecedora e especializada: Câmara/Sala do Cível, Administrativo, Trabalho e Família. No final das contas não se perspectivou nenhuma evolução, para além da nominal, confundem-se as quatro jurisdições e não se faz nada no sentido de construir fronteiras que garantam a celeridade processual e boa administração.
Este sistema singular é resultado da conturbada história angolana, desde o seu estatuto de colónia portuguesa, passando por uma independência conquistada através de mais de dez anos de guerra colonial e imediatamente seguida de um longo e sangrento período de guerra civil até ao seu estatuto actual de potência económica em ascensão.


Outras excentricidades do sistema angolano

Sabia que…


· Apesar do art.43º da Constituição ter um conteúdo muito semelhante ao art.268º nº4 da Constituição portuguesa, o direito fundamental à tutela efectiva, imediatamente exequível e princípio constitucional da máxima efectividade é um mero ideal, em face das reais limitações impostas pelo sistema angolana?
· São os tribunais comuns que decidem sobre os litígios em que a Administração é parte, por aplicação de normas de direito administrativo?
· Sistema processual é de tipo objectivista (defensa da legalidade e o interesse publico, em que o juiz só pode anular actos ilegais e tem poderes de cognição limitados)?
· É um contencioso administrativo de actos – não há contencioso regulamentar e só há parcialmente contencioso de contratos administrativos (sim, contratos administrativos no sentido tradicional)?
· As acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado são julgadas nos tribunais cíveis?
· A função política e legislativa não são passíveis de impugnação em sede de contencioso administrativo?
· Os actos políticos, proferidos em processo disciplinar, laboral, fiscal, aduaneira, civil também são inimpugnáveis?
· Os actos administrativos gerados no quadro das relações jurídico-administrativas inter subjectivistas podem ser apreciados mas não os gerados no quadro de relações intra-orgânicas?
· Os juízes fiscalizam, anulam, declaram o acto nulo mas não podem condenar na prática do acto devido?
· O recurso contencioso ainda é obrigatoriamente precedido de reclamação ou recurso hierárquico, conforme os casos?
· Existe um Princípio da tipicidade das formas processuais, ou seja, os particulares só podem impugnar de acordo com os meios processuais previstos na lei, notando-se um grande e quase exclusivo contencioso contra actos administrativos?
· Em princípio são as partes interessadas que promovem o processo contencioso administrativo, mas nem sempre é assim, pois por vezes não são as partes em determinadas situações a ter iniciativa processual: isto acontece sempre que em causa está um acto administrativo inconstitucional ou ilegal, cabendo a legitimidade processual apenas ao M.P.?
· Os fundamentos da decisão do juiz não têm de se limitar aos factos invocados pelas partes, uma vez que prevalece a verdade material sobre a verdade formal (juiz não pode, contudo, violar o princípio da tipicidade processual e o âmbito do processo, previamente fixado pelo pedido e pela causa de pedir)?
· Não se consideram só os factos alegados e provados por uma das partes. O contencioso administrativo não tem como função apreciar se uma ou outra parte tem um direito subjectivo; o que está em causa é a apreciação da conformidade de um acto com a lei?
· A lei processual administrativa angolana só tem em conta a competência material? Mas ainda assim, quando se fala em competência do tribunal, também se fala em competência territorial, em competência em razão da hierarquia e em competência em razão do valor?
· Os tribunais administrativos se encontram organizados em “Sala do Cível e Administrativo”, “Câmara do Cível e Administrativo” e “Plenário do Tribunal Supremo”?
· É aceite a coligação de demandantes e demandados, mas os requisitos para os primeiros (tribunal competente tem de ser o mesmo em função ou em razão da hierarquia e do território) são menos exigentes que os requisitos para os segundos (fundamentos do recursos contencioso, quer de facto, quer de direito, têm de ser os mesmos, e o tribunal competente para o conhecimento do recurso tem também de ser o mesmo em razão de hierarquia e território)?
· Pode intervir nos actos como demandante ou demandado todo aquele que tiver ou demonstrar ter um interesse idêntico à parte com a qual pretende coligar-se. Contudo, apenas é admitido até ao último dia do prazo para a apresentação dos articulados, tendo o assistente um papel subordinado, auxiliar à parte principal, razão pela qual não perturba o normal decurso do processo?
· Não são recorríveis os actos de natureza política?
· A lei angolana estabelece que apenas podem ser impugnados os actos administrativos de carácter definitivo e executório, o que tem como consequência não serem recorríveis os actos que não sejam administrativos, os actos administrativos internos, os actos administrativos não definitivos e não executórios? Que o legislador angolano estabelece a definitividade e a executoriedade como condição de acesso à justiça administrativa, ao invés de estabelecer a definitividade por lesão?
· Também não são recorríveis os actos administrativos que sejam a confirmação de outros? Nem os actos administrativos proferidos em processo de natureza disciplinar, laboral, fiscal (não se pode impugnar os actos da Administração Fiscal lesivos dos interesses dos contribuintes) ou aduaneira? Nem os de natureza cível que estejam afectos à jurisdição própria?
· Se a entidade que tem o dever de contestar não o fizer, não há a confissão dos factos deduzidos? Que a falta de contestação não tem como efeito a aceitação dos factos nem do pedido, o que vigora é o princípio da verdade material?
· A autoridade recorrida, quando notificada, poder ter uma das seguintes reacções: responder, sustentando a validade do acto; responder, limitando-se a oferecer os merecimentos dos autos, cujo conteúdo é nada mais do que uma resposta de que se tomou conhecimento do acto e se irá acompanhar; não responder ou a qualquer momento, até ao termo do prazo da contestação, revogar o acto por si praticado? E que neste último caso, a situação volta ao status quo ante e a instância extingue-se, porque já não há objecto do contencioso administrativo, já não há acto administrativo ilegal?
· Após apresentadas as alegações, ou findo o respectivo prazo, vão os autos com vista ao M.P., que vai apreciar os eventuais vícios de que pode enfermar o processo e pronuncia-se pelo provimento ou pela negação do provimento ao recurso contencioso?
· Tanto o momento como os modos do cumprimento dependem, dentro de certos limites, de uma decisão discricionária da A.P., ou seja, de uma escolha livre entre duas ou mais soluções possíveis: se o acto anulado é irrevogável, a A.P. pode optar entre o cumprimento da sentença e a invocação de uma causa legítima de inexecução, pelo que, embora sujeito a controle jurisdicional, afasta, desde logo, qualquer automatismo do alegado efeito repristinatório?
· Apesar de existir um dever de executar a sentença, a A.P. pode invocar uma causa legítima de inexecução da sentença? Ou seja, o dever de reposição da situação anterior pode cessar quando esteja em presença uma causa legítima de inexecução ou incumprimento da decisão, obrigando, no entanto, a A.P. a pagar uma indemnização compensatória ao titular do direito à execução?
· A principal lei do Contencioso angolano (Lei nº 2/94 de 14 de Janeiro) reúne normas equivalentes ao CPA (por exemplo, a definição de acto administrativo e poderes delegados), ETAF (como a divisão de competência entre os tribunais e o seu funcionamento), CPTA (entre outras, normas sobre alçadas, poderes de cognição do juiz e legitimidade processual), CPC (como sejam a tramitação pormenorizada do processo, actos de secretaria e custas) e Lei da Arbitragem Voluntária?
· Além desta grande lei, e embora esta contenha um título dedicado à suspensão da eficácia dos actos administrativos, existe uma lei autónoma relativa a esta matéria (Lei nº 8/96 de 19 de Abril – Lei de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo)?
· A Lei de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo, apesar do nome, regula não apenas a suspensão da eficácia do acto administrativo, como também da decisão judicial?
· Se a Administração revogar o acto objecto de impugnação, o tribunal porá fim ao processo (independentemente dos efeitos já produzidos)?
· Não existem critérios de competência material dos tribunais administrativos em vista da organização judiciária sui generis em vigor?
· O valor das alçadas é fixado em função do valor do salário mínimo da função pública?
· É proibida a arbitragem nas acções derivadas de contratos administrativos (com excepção dos contratos que revistam a natureza de contratos económicos internacionais)?
· A forma de execução das sentenças varia consoante as entidades demandadas (Estado ou entidades particulares)?
· Existe a possibilidade de execução de multas administrativas?
· É possível suspender a eficácia da decisão judicial, por seis meses, quando esta for susceptível de causar prejuízo grave para o Estado?
· Quaisquer dúvidas e omissões são na interpretação e aplicação das principais leis de contencioso administrativo são resolvidas pela Assembleia Nacional ou pelo Conselho de Ministros, dependendo da lei em questão?



Bibliografia:

PACA, Cremildo, Direito do Contencioso Administrativo Angolano, Almedina, 2008

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009

Legislação angolana:
Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro
Lei nº 17/90, de 20 Outubro
Lei nº 12/91, de 6 de Maio
Lei nº 2/94 de 14 de Janeiro
Lei nº 8/96 de 19 de Abril
Lei Constitucional da República de Angola
Legislação portuguesa
Constituição da República Portuguesa
Código do Procedimento Administrativo
Código de Processo nos Tribunais Administrativos
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
Lei da Arbitragem Voluntária
Código de Processo Civil