sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

"Cheirinho a responsabilidade do Estado"

O tema da responsabilidade do Estado é cada mais relevante. Para um melhor esclarecimento e uma visão mais ampla sobre este assunto resolvemos analisar não só o regime português mas também o espanhol, visto que, hoje em dia e devido à globalização e à integração em grupos regionais, as legislações tendem a uniformizar-se.

Começando por Portugal, temos que distinguir dois momentos: o antes e o depois da reforma do contencioso. Assim,

Antes da entrada em vigor da reforma do contencioso administrativo:

Numa situação hipotética mas semelhante à francesa (caso Agnés Blanco, Acórdão Blanco do Tribunal de Conflitos Francês de 8 de janeiro de 1873), os pais de uma criança pediam uma indemnização à administração nos tribunais judiciais. Estes não conheceram o pedido por se considerarem incompetentes,(por estar em causa um acto de gestão pública). Depois desta sentença, os pais, inconformados, intentam, então, uma acção nos tribunais administrativos obtendo o mesmo resultado,(com a diferença de que agora se considerava que o acto em causa era de gestão privada).
Finalmente e, por estarmos perante um conflito negativo de jurisdição, vem o tribunal de conflitos estabelecer qual o tribunal competente e qual o direito aplicável (usando critérios que ninguém percebia muito bem).
Nestes casos, se fosse um acto de gestão privada, então a administração responderia segundo o direito civil e perante os tribunais judiciais e se, pelo contrário, fosse considerada uma actuação de gestão pública, a adiministração responderia perante os tribunais administrativos.
Havia aqui uma dualidade de regimes jurídicos e de tribunais competentes.
Para o Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva, este era um sistema injusto visto que, e de entre vários argumentos, havia uma ausência de critérios lógicos seguros de distinção entre gestão pública e privada. (A jurisprudência era obrigada a encontrar orientações para resolver os casos concretos, muitas vezes, renunciando a critérios de distinção entre a gestão pública e a privada, substituindo-a pelo recurso à sensação impressionista. O Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva até ironiza a situação dizendo que era a técnica do "cheirinho a direito público").
Isto provocava conflitos negativos de jurisdição, como já foi referido, mas também problemas de morosidade e, mesmo de denegação de justiça. (O que acabaria por concretizar uma lesão grave do direito fundamental à protecção plena e efectiva dos particulares).

Com a reforma do contencioso administrativo:

Foi consagrada a unidade jurisdicional ao nível da responsabilidade civil do estado. A nossa Constituição assenta a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais".
O artigo 4º do ETAF veio consagrar as àreas de competência dos tribunais administrativos acabando com as dúvidas relativas a litígios que se encontravam em domínios de fronteira entre o direito público e o direito privado.(O ETAF abandona a distinção entre actos de gestão pública e privada).

De modo a ser mais fácil a exposição sobre a responsabilidade extracontratual do Estado, iremos agora debruçar-nos sobre o ETAF.

No artigo 4º nº1 alíneas g) e h), é atribuida à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade civil derivadas de actuações do Estado no exercício das funções legislativa, judicial (alínea g) e administrativa (alínea h). Vamos agora aprofundar cada uma delas.
Quanto à função legislativa, ela passou a cair no âmbito de reserva da jurisdição administrativa por ainda envolver a aplicação de um regime de direito público, visto que encontramos sempre na sua base o exercício de poderes públicos. Não podemos deixar de referir que este regime sofre excepções derivadas de normas constitucionais como a da irresponsabilidade dos deputados (artigo 157 nº1 CRP).
Quanto à função administrativa, esta haverá quando forem causados danos causados por actos de natureza administrativa, relativos, por exemplo ao inquérito e instrução criminal.
Finalmente, quanto à responsabilidade civil do estado por danos derivados do exercício da função judicial. Nestes casos, o STA só admitia a competência dos tribunais quando o facto ilícito que leva ao dano fosse imputado a um òrgão da administração judiciária no exercício de actividade estranha à função de julgar, ou ao serviço globalmente considerado sem individualização do agente concretamente responsável. A doutrina Dominante, por sua vez, considera que de acordo com o novo ETAF, é incumbida à jurisdição administrativa a apreciação de todas as questões de responsabilidade que decorram da actuação dos magistrados (i.e.: danos resultantes do funcionamento da administração da justiça como ofensas ao direito a uma decisão num prazo razoável) com a ressalva do erro judiciário (artigo 4º nº3 al.a ETAF) e mesmo neste erro judiciário, haverá competência se este tiver sido cometido no âmbito dessa jurisdição.

De seguida, temos a alinea i) do nº1 do artigo 4º que também atribui competência aos tribunais administrativos, desta vez para acções que visem a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados. Nestes casos, a jurisdição administrativa só será competente para apreciar os litígios quando a esses sujeitos for aplicável o regime específico da responsabilidade do estado e demais pessoas colectivas de direito público (Lei nº67/2007, de 31 de Dezembro). Ou seja, para se aplicar esta alínea têm de haver disposições de direito substantivo que prevejam a aplicação deste regime a entidades privadas porque senão corre-se o risco de esta alínea ficar sem qualquer alcance prático.



E nuestros hermanos, que hacen??

A responsabilidade do Estado Espanhol poderá advir de três actos distintos: administrativo, judicial e legislativo. Falamos, então, respectivamente, de responsabilidade do Estado-Administrador, do Estado- Juiz, e do Estado-Legislador.
Num pequeníssimo contexto histórico, cabe dizer que a responsabilidade do Estado surge, principalmente, no século XIX, com a ordem anteriormente enumerada. Com o Estado-Polícia foram-se identificando várias “novas” espécies de indemnizações devidas aos particulares, ou seja, novas formas de protecção do indivíduo face aos danos causados pelo Estado no âmbito do desenvolvimento das suas actividades. Assim sendo, sempre que o Estado impõe um sacrifício a um particular que ele não tem de acarretar, a Hacienda Publica fica-lhe em dívida, i.e., deve-lhe uma justa indemnização.

A doutrina espanhola diverge também em certos temas, sendo fundamental a questão de se estamos perante uma responsabilidade patrimonial, ou uma responsabilidade civil: a primeira, baseia-se num Estado que presta serviços ao cidadão, apoiado no princípio da legalidade e da proibição do arbítrio, com jurisdição do contencioso administrativo; a responsabilidade civil exige culpa ou negligência de quem pratica o acto administrativo causador de danos, tendo jurisdição judicial. Embora as duas estejam cada vez mais próximas, muitos autores ainda as distinguem, considerando que efectivamente o Estado Espanhol consagrou a responsabilidade patrimonial.

A responsabilização dos actos provenientes da função administrativa do Estado surge com a expropriação. A indemnização era defendida através da garantia dos seus direitos, que estariam em diplomas legais. O aperfeiçoamento do regime leva a que o Regímen Jurídico de la Admnistración Publica (ley 30/1992), que desenvolve o exposto no artigo 33º da Constituição Espanhola, consagre a responsabilidade objectiva do Estado. Isto significa que todos os particulares têm direito a serem indemnizados, por todas as lesões que sofrerem, em qualquer dos seus bens e direitos, sempre que isso seja consequência do funcionamento normal ou anormal dos serviços públicos – artigo 145º/1.
Mais, acresce que esta responsabilidade objectiva permite que o particular possa exigir directamente do Estado uma indemnização ainda que o acto tenha vindo de uma Concessionária, ou mesmo de uma Comunidade Autónoma – pois, como referido no artigo 106º/2 da Constituição, o Estado não se pode desvincular do ressarcimento, quer este advenha ou não de uma gestão indirecta. Possibilita-se todavia, ao Estado, o direito de regresso do montante pago se, exigindo-se dos autores responsáveis pelos actos, relevarem as circunstâncias de dolo, negligência e nexo de causalidade.
Há que referir, também, que a expressão “funcionamento normal ou anormal”, é considerada, pela Jurisprudência, como inexistente. Qualquer sinal de “mal funcionamento” será critério para condenar a Administração.
No contexto desta responsabilização, surge também a chamada responsabilidade pública. Esta será a essência para que haja uma indemnização com base nos actos lícitos durante o funcionamento dos serviços públicos, porém muito difícil de aplicar, pois a analise é casuística.
Acrescentar ainda que o Consejo de Estado e a Comunidad de Valência já vieram afirmar que a responsabilização não se deverá entender como algo garantido, não será para todos os danos resultantes das acções de titularidade pública.
Desta forma, a responsabilidade por actos administrativos tem os seguintes requisitos mínimos: a actuação administrativa; a lesão – um dano certo, já produzido, avaliável pecuniariamente; o nexo de causalidade entre o acto e o dano; a ausência de caso de força maior e, a não necessidade do particular acarretar com as consequências deste acto.

Quanto a actos provenientes do Estado-Juíz, o que está a ser posto em causa é o artigo 121º da Constituição Espanhola. Aí refere-se que os juízes, ainda que independentes, poderão ser responsabilizados. Ao mesmo tempo define também que cabe ao Estado a responsabilização aquando da actuação judicial.
Os regimes destes actos foram variando com o passar dos tempos, ora dependendo da culpa dos juízes, ora se haveria somente uma responsabilidade pessoal do juiz, ou também do Estado, e ainda, que afinal a única responsabilidade relevante era a proveniente dos actos administrativos.
A lei 30/1992, no seu artigo 139º/4, remete para a Ley Orgánica del Poder Judicial. Considera-se que poderão vir a ser indemnizáveis actos cujos danos sejam efectivos, avaliáveis em dinheiro, individualizados e que, advenham de erros judiciais. Neste caso, tanto juízes como magistrados devem aplicar da melhor forma o Direito, sendo que o erro surge quando haja um desequilíbrio entre a realidade e a norma legal, quando haja um desajustamento objectivo da situação. Não falamos então de erros aritméticos ou materiais, mas sim em erros previstos em sentenças com decisões que contrariem o evidente, ou que não são lógicas/racionais.
Outros danos passíveis de ser indemnizados são os provenientes da prisão preventiva, ou seja, erros sobre a decisão que levaram à aplicação da pena de prisão, como disposto no artigo 294º da Ley Orgánica del Poder Judicial. Aqui, a causa tem de recair sobre a inexistência do acto, que tenha provocado prejuízos e a que tenha sido aplicada esta pena.
A indemnização de actos judiciais poderá vir, também, do funcionamento anormal da Administração de Justiça. Falamos dos casos em que houve prejuízos e que foram causados por atrasos no decorrer dos processos (prazos para lá do razoável) ou por perda de objectos depositados ou de documentos que fariam prova.
De referir que, mais uma vez, quando as Comunidades Autónomas, tenham competências assumidas neste campo, isto é, quanto ao funcionamento anormal da Administração, esta poderá ser responsabilizada se tiver contribuído para o dano.

Por último, surge a responsabilidade do Estado-Legislador… questão polémica no Estado Espanhol. Surge, primeiro, a dúvida se o artigo 9º CE, artigo base para todas as responsabilidades já descritas, prevê também a responsabilidade legislativa ou não. Posteriormente, surgem vários casos em que a existência desta responsabilidade muda, e muito, as suas sentenças: caso do processo de descolonização do Sahara, caso da independência do Guine Equatorial, caso da antecipação da idade de jubilação, etc.
Finalmente, e só em 1992, surge uma resposta definitiva, mas não menos controversa: a Ley del Reginen Jurídico de las Admnistraciones Publicas atribui a obrigação de indemnizar à Administração Publica, que engloba o Estado-Legislador. E mais, refere-se sempre à lei ordinária, limitando assim a sua responsabilidade. Assim, estabeleceu-se que se a Administração ao aplicar uma norma causar prejuízos, o Estado pode ser chamado a responder, pois é a ele que cabe o exercício do poder legislativo.
Ainda assim várias criticas surgiram: a que normas cabe indemnizar? Só as declaradas inconstitucionais? Todas? O Tribunal Constitucional veio responder à dúvida, considerando que se poderão indemnizar as decisões com base em leis inconstitucionais mas também com as que têm por base leis constitucionais, ao qual se chamou “tercer via”.
Quanto a, mais uma vez, Comunidades Autónomas, os seus parlamentos legislam com base em competências assumidas. Assim, se a aplicação de uma Lei - Base do Estado for posta em causa, responderá o Estado. Se o não for, será responsabilizada a Comunidade. Se não se conseguir distinguir directamente o acto do órgão que o emanou, deverá ver-se qual terá maiores responsabilidades na ocorrência do mesmo.
Questão também relevante é a de se a omissão de legislar, quer absoluta quer relativa (não regulação global de um tema, e regulação de um tema em que falta definir certos aspectos) também poderá levar à responsabilização. A doutrina considera que sim, desde que provado o nexo de causalidade entre a omissão e o dano.

Deste modo e após esta breve explicação de cada um dos regimes, optámos por transcrever alguns artigos da legislação espanhola, que considerámos importantes para esta nossa intervenção no blog:

Constituição Espanhola
Artículo 9.

1. Los ciudadanos y los poderes públicos están sujetos a la Constitución y al resto del ordenamiento jurídico.

2. Corresponde a los poderes públicos promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas; remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud y facilitar la participación de todos los ciudadanos en la vida política, económica, cultural y social.

3. La Constitución garantiza el principio de legalidad, la jerarquía normativa, la publicidad de las normas, la irretroactividad de las disposiciones sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales, la seguridad jurídica, la responsabilidad y la interdicción de la arbitrariedad de los poderes públicos.

Artículo 33

1. Se reconoce el derecho a la propiedad privada y a la herencia.

2. La función social de estos derechos delimitará su contenido, de acuerdo con las Leyes.

3. Nadie podrá ser privado de sus bienes y derechos sino por causa justificada de utilidad pública o interés social, mediante la correspondiente indemnización y de conformidad con lo dispuesto por las Leyes.

Artículo 106.

1. Los Tribunales controlan la potestad reglamentaria y la legalidad de la actuación administrativa, así como el sometimiento de ésta a los fines que la justifican.

2. Los particulares, en los términos establecidos por la Ley, tendrán derecho a ser indemnizados por toda lesión que sufran en cualquiera de sus bienes y derechos, salvo en los casos de fuerza mayor, siempre que la lesión sea consecuencia del funcionamiento de los servicios públicos.

Artículo 121.

Los daños causados por error judicial, así como los que sean consecuencia del funcionamiento anormal de la Administración de Justicia, darán derecho a una indemnización a cargo del Estado, conforme a la Ley.

Ley Orgánica del Poder Judicial
Artículo 294º

1. Tendrán derecho a indemnización quienes, después de haber sufrido prisión preventiva, sean absueltos por inexistencia del hecho imputado o por esta misma causa haya sido dictado auto de sobreseimiento libre, siempre que se le hayan irrogado perjuicios.

2. La cuantía de la indemnización se fijará en función del tiempo de privación de libertad y de las consecuencias personales y familiares que se hayan producido.

3. La petición indemnizatoria se tramitará de acuerdo con lo establecido en el apartado 2 del artículo anterior.

Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común
Artículo 139. Principios de la responsabilidad.

1. Los particulares tendrán derecho a ser indemnizados por las Administraciones Públicas correspondientes, de toda lesión que sufran en cualquiera de sus bienes y derechos, salvo en los casos de fuerza mayor, siempre que la lesión sea consecuencia del funcionamiento normal o anormal de los servicios públicos.

2. En todo caso, el daño alegado habrá de ser efectivo, evaluable económicamente e individualizado con relación a una persona o grupo de personas.

3. Las Administraciones Públicas indemnizarán a los particulares por la aplicación de actos legislativos de naturaleza no expropiatoria de derechos y que éstos no tengan el deber jurídico de soportar, cuando así se establezcan en los propios actos legislativos y en los términos que especifiquen dichos actos.

4. La responsabilidad patrimonial del Estado por el funcionamiento de la Administración de Justicia se regirá por la Ley Orgánica del Poder Judicial.

Artículo 145. Exigencia de la responsabilidad patrimonial de las autoridades y personal al servicio de las Administraciones Públicas.

1. Para hacer efectiva la responsabilidad patrimonial a que se refiere el Capítulo I de este Título, los particulares exigirán directamente a la Administración pública correspondiente las indemnizaciones por los daños y perjuicios causados por las autoridades y personal a su servicio.

2. La Administración correspondiente, cuando hubiere indemnizado a los lesionados, exigirá de oficio de sus autoridades y demás personal a su servicio la responsabilidad en que hubieran incurrido por dolo, o culpa o negligencia graves, previa instrucción del procedimiento que reglamentariamente se establezca.

Para la exigencia de dicha responsabilidad se ponderarán, entre otros, los siguientes criterios: el resultado dañoso producido, la existencia o no de intencionalidad, la responsabilidad profesional del personal al servicio de las Administraciones públicas y su relación con la producción del resultado dañoso.

3. Asimismo, la Administración instruirá igual procedimiento a las autoridades y demás personal a su servicio por los daños y perjuicios causados en sus bienes o derechos cuando hubiera concurrido dolo, o culpa o negligencia graves.

4. La resolución declaratoria de responsabilidad pondrá fin a la vía administrativa.

5. Lo dispuesto en los párrafos anteriores, se entenderá sin perjuicio de pasar, si procede, el tanto de culpa a los Tribunales competentes.


Bibliografia:

Pereira da Silva, Vasco - "O contencioso administrativo no divã da psicanálise", Almedina, 2009
Amaral, Diogo Freitas do - "Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo", Almedina, 2007;
Vieira de Andrade, José Carlos - " A justiça administrativa", Almedina, 2006
Mayol, Vicente Garrido - "La respondabilidad patrimonial del estado", Tirant lo Blanch, 2004

Internet:

http://www.mir.es/SGACAVT/indeyayu/indemnizaciones/resp_patrimonial_estado/normativa.html

www.dialnet.unirioja.es - "la responsabilidad patrimonial de la administración publica", Benito Sánchez Gómez

http://www.lexadin.nl/wlg/legis/nofr/eur/lxwespa.htm

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