segunda-feira, 26 de outubro de 2009

PROCESSO ADMINISTRATIVO ALEMÃO


Procurando ir ao encontro do primeiro desafio lançado pelo Professor Vasco Pereira da Silva, optámos por fazer uma breve reflexão acerca do processo administratvo alemão, comparando-o em certos pontos com o português, reflexão essa que não pretende ser em nada exaustiva, tendo pelo contrário o objectivo de realçar os principais aspectos do sistema de contencioso administrativo alemão. A escolha da Alemanha prende-se essencialmente com o facto da reforma do contencioso administrativo em 2004 ter afastado o modelo de contencioso administrativo português da primitiva matriz francesa para se aproximar do modelo alemão da Verwaltungsgerichtsordnung de 1960. Apesar do modelo de contencioso adminsitrativo português ainda ter manifestações de institutos inspirados na lógica objectivista francesa, a verdade é que que tende cada vez mais para uma perspectiva subjectivista de inspiração alemã, podendo mesmo actualmente dizer-se que é um modelo predominantemnte subjectivista.

Tutela Jursidicional efectiva dos direitos dos particulares

O artigo 19 nº 4 da lei fundamental alemã (Deutsches Grundgesetz), a par do artigo 268.º, nº 4 da CRP, garante a todos os indivíduos a protecção legal contra qualquer acção ou omissão de uma autoridade pública. Em ambos os sistemas de contencioso é consagrado o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares.
Qualquer acção ou omissão de uma autoridade pode ser desafiada e revista com recurso a tribunais independentes, especialmente aos tribunais administrativos. Também em Portugal existe uma jurisdição especializada, no âmbito da qual foi criada a categoria dos Tribunais Administratvos e Fiscais nos termos do artigo 209.º,1, a) da CRP) (se bem que a especialização parece ser superior na Alemanha já que os Tribunais Administrativos e os Tribunais Fiscais constituem duas ordens diferentes de tribunais neste país).

Diplomas aplicáveis

A lei da República Federal Alemã é sobretudo lei escrita, tal como acontece em Portugal. As regras para o procedimento administratvo e para a protecção legal nos tribunais administrativos estão no Procedimento Administrativo Federal- “Bundesverwaltungsverfahrensgesetz (BVwVfG)” (assim como no idêntico Procedimento Administrativo dos Estados Alemães Federados) e no Decreto dos Tribunais Administrativos – “Verwaltungsgerichtsordnung (VwGO)”. As previsões destes decretos aplicam-se por igual a todas as administrações. Deste modo, a protecção legal é completamente uniforme em toda a República Federal da Alemanha.
À semelhança, em Portugal os diplomas relevantes em matéria de contencioso administrativo são o CPA, CPTA e ETAF.
O tipo de resposta que a lei administrativa fornece depende do tipo de acção que a autoridade pratica ou omite. Há um sistema complexo de recursos que permite numerosas possibilidades de revisão judicial. Vamos concentrar-nos nos recursos contra a mais importante e frequente forma de actuação administrativa - o acto Administrativo (“Verwaltungsakt”)- e ver quais são as possibilidades de reacção contra uma decisão administrativa ilegal.

O acto administrativo

Na prática, a maior parte da actuação administrativa reveste a forma de actos administrativos e, por isso, o conceito de acto Administrativo é crucial para o Direito administrativo alemão.
De acordo com a secção 35 (1) do Procedimento Administratvo Alemão, um acto administrativo será qualquer ordem, decisão ou outra medida de poder adoptada pela Adminsitração com o obectivo de regular um caso individual relacionado com questões de Direito Público , e com o objectivo de produzir um efeito legal directo sobre uma questão externa. Se uma autoridade pratica um acto administrativo, ele vincula a parte afectada sendo que a decisão torna-se imediatamente eficaz a partir do momento que o destinatário do acto for informado do mesmo. Um acto permanece válido até ser revogado ou anulado. Mesmo que seja ilegal, continua eficaz enquanto não seja contestado pela pessoa afectada. Como regra, após um mês da data em que a Administração notifica o particular do acto, o mesmo torna-se definitivamente eficaz e o particular deixa de poder contestá-lo. Estamos perante o “ poder da duração”(Bestandskraft). Uma excepção a esta regra é o acto Administrativo nulo, em que há um defeito legal sério e óbvio pelo que nestes casos não é necessário recorrer do acto já que este é inválido desde o momento em que foi praticado.

O Direito administrativo alemão fornece dois tipos de respostas contra um acto Administrativo:
- a reclamação dirigida à autoridade que o praticou
- a possibilidade de intentar uma acção no Tribunal Administrativo

Se o particular afectado quer reclamar contra a decisão de uma autoridade administrativa, o primeiro passo é expressar uma objecção contra a mesma junto da autoridade que a emitiu. A autoridade terá então a oportunidade de corrijir a decisão errada antes da parte lesada intentar uma acção administrativa. Depois da parte lesada ser notificada de que a autoridade rejeitou a sua reclamação terá um mês para intentar uma acção num Tribunal Administrativo local. Antes de ser intentada uma acção é obrigatório o recurso da decisão administrativa por via do Procedimento Administrativo.

Independência e Jurisdiçao dos Tribunais

Na Alemanha o desenvolvimento histórico conduziu à criação de tribunais administrativos especiais que são completamente independentes dos tribunais civis e criminais, assim como da secção executiva do Governo. Segundo a secção 1 do Decreto dos Tribunais Administrativos do Estado “ A jurisdição dos tribunais administrativos pertence a tribunais independentes que estão totalmente separados das funções administrativas”. Igualmente em Portugal a lei é clara quanto à independência dos tribunais administrativos face à Administração, sendo que nos termos do artigo 2.º do CPTA “os tribunais da jurisdição admnistrativa e fiscal são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
A diferença entre os tribunais administrativos e os tribunais ordinários é a de que a jurisdição dos tribunais administrativos está limitada aos litígios administrativos. Eles não decidem disputas entre particulares, mas apenas casos em que um acto da Administração Pública está em causa. A sua jurisdição compreende todas as disputas previstas pelo Direito Público que não tenham natureza constitucional e que não caiam numa jurisdiçao administrativa especial. Na grande maioria dos casos uma entidade pública, um estado federal ou a própria Républica Federal da Alemanha, são partes nestes casos.
Juntam-se aos tribunais administrativos, os quais têm jurisdição geral; dois outros tipos de tribunais administrativos com jurisdição especial, são eles os Tribunais de Segurança Social e os Tribunais Fiscais. Excluídas da jurisdição dos tribunais administrativos estão todas as acções que digam respeito à compensação do particular pela expropriação efectuada pelo Estado, assim com à compensação pelos danos provocados pelo Estado, sendo que nestas situações a competência cabe aos tribunais ordinários. Esta excepção que tem na sua origem razões históricas, não deixa de ser uma inconsistência no sistema alemão.
Como consequência, a distinção entre tribunaias comuns e tribunais administrativos depende da resposta/solução que se procura dar e não do objecto do litígio ou da natureza das partes. A competência dos tribunais administrativos na Alemanha é, portanto, menos abrangente e clara do que em França.

Competência do Tribunal Administrativo
Legalidade vs mérito

O Tribunal Administrativo não tem competência para emitir um novo acto Administrativo. No caso de se contestar o acto Administrativo, o tribunal pode anular o acto mas não o pode emendar ou substituir. Isto significa, em muitos casos que a autoridade administrativa vai emitir uma nova decisão com base na opinião legal do tribunal. No caso de haver uma omissão, o Tribunal pode ordenar que a administração actue como cumprimento de um dever.
No procedimento preliminar (aquando da reclamação perante a autoridade administrativa que praticou o acto) é possível reclamar não só quanto à legalidade do acto mas também quanto ao seu mérito, mas aquando é intentada uma acção nos tribunais administrativos o demandante apenas pode pôr em causa a legalidade do acto e não o seu mérito. Também em Portugal o artigo 3º, nº1 do CPTA vincula os tribunais administrativos a aferir apenas da legalidade do acto e não da sua “conveniência ou oportunidade”.
Os argumentos apresentados em tribunal devem estar relacionados com questões de Direito. Se está em causa a fiscalização pelos tribunais do exercício do poder discricionário na decisão, eles apenas estão autorizados a investigar se a autoridade abusou ou usou erradamente desse poder que lhe é atribuído por lei. Contudo, os tribunais administrativos alemães têm ainda de verificar se foi respeitada a proporcionalidade da decisão, já que o princípio da proporcionalidade é um elemento essencial no Estado de Direito, tal como delineado pela Constituição Alemã (este pricípio tem uma igual importância para o Estado de Direito português-artigo 266.º, nº2 da CRP).

Os Tribunais

O demandante, assim como a autoridade administrativa têm o direito de recorrer para o Tribunal Administrativo Superior e, em circunstâncias especiais, para o Tribunal Administrativo Federal.
A jurisdição administrativa opera a três níveis:
· Tribunais Admnistrativos Locais (primeira instãncia)
· Tribunais Superiores (ao nível do estados federados, segunda instãncia)
· Tribunal Administrativo Federal (ao nível Federal, terceira instãncia)

O Tribunal Administrativo Federal funciona sobretudo como um Tribunal de recurso para os Tribunais Administrativos Superiores e até para os Tribunais Administrativos Locais, em certas circunstãncias. O Tribunal Administrativo Federal funciona também como um Tribunal de primeira e segunda instãncia em litígios que não envolvam questões de constitucionalidade entre a federação e um estado ou entre dois ou mais estados. Um Tribunal Superior tem jurisdição no que toca aos actos das autoridades administrativas e às queixas contra os funcionários do Governo local do estado federado de que detém jurisdição. Alguns dos supremos orgãos federais estão isentos dos Tribunais Superiores.
Em Portugal são também três os tribunais que compõem a ordem dos Tribunais Administrativos (e Fiscais): O Supremo Tribunal Administrativo (terceira instãncia), o Tribunal Central Administrativo(segunda instãncia) e o Tribunal Administrativo de Círculo (primeira instãncia). Tal como o Tribunal Administrativo Federal, o Supremo Tribunal Administrativo que se apresenta como o seu correspondente português, pode também ter competências de 1ª e 2ª instãncia nos termos do artigo 24.º, nº 1 e 2 do ETAF e arigo 151.º do ETAF.

Legitimidade

Os cidadãos destinatários do acto e lesados pelo mesmo, que pretendem ver o acto anulado têm de alegar que os seus direitos foram violados, caso contrário não terão legitimidade para propor a acção. As pessoas que não são destinatárias do acto têm legitimidade para intentar uma acção se provarem que foram afectadas nos seus direito individuais pelo mesmo. Como regra, o requerente tem legitimidade se afirma que a administração violou disposições que servem não só para proteger o público em geral, mas também os seus direitos individuais.


O processo Administrativo

O processo administrativo é inquisitorial já que os tribunais administrativos são obrigados a investigar a verdade sem estarem vinculados às provas apresentadas pelas partes. No entanto o processo está sempre à disposição dos litigantes. Ao tribunal é proibido ir além do pedido do autor e este pode pôr fim ao processo com um acordo amigável ou simplesmnete retirando-se do processo a qualquer momento.
O processo é baseado no princípio da livre apreciação de provas. O tribunal decide de acordo com a convicção que livremente formou com base no resultado global do processo. Não existem regras estatutárias que confiram superioridade a um tipo de prova sobre outra.
Como já vimos, o processo nos tribunais administrativos alemães inicia-se com a propositura da acção. Nos tribunais de primeira instância, a acção não tem de obedecer a nenhuma forma específica. Qualquer pessoa pode intentar uma acção por si só através de um simples papel ou registá-la com a ajuda de um funcionário judicial. No entanto, nos Tribunais Administrativos Superiores e no Tribunal Administrativo Federal, as partes devem ser representadas por um advogado profissional ou por um professor universitário de Direito.
A decisão do Tribunal de Justiça vai depender do tipo de acção intentada pelo autor.

Tipo de acções

No Direito Administrativo alemão há, básicamente, cinco tipos de acções:
· Acções rescisórias (visam a anulação de um acto Administrativo). Também em Portugal há a acção de impugnação de actos administrativos que é herdeira do recurso contencioso de anulação, sendo que este, até à reforma de 2004, era o único meio processual existente para o Direito Administrativo português (artigo 50.º a 65.º do CPTA).
· Acções de anulação de normas emitidas pela Administração.Também o artigo 268.º, nº4 da CRP prevê a acção de declaração da ilegalidade de normas administrativas (artigo 73.º a 76.º do CPTA).
· Acções para a emissão de injunções obrigatórias (dirigidas à prática de um acto Administrativo). Em Portugal, apenas com a reforma de 2004 passaram a existir acções de condenação à prática do acto admninstratvo devido, antes disso ficcionava-se que o silêncio era um acto de indeferimento tácito para se poder fazer uso do único meio processual existente:o recurso de anulação de actos admnistrativos, com o qual impugnava-se o acto tácito de indeferimento.(artigo 66.º a 72.º do CPTA).
· Acções declarativas, que estabelecem a existência ou não existência de uma dada situação jurídica. As mesmas estão a par das acção de simples apreciação ou de reconhecimento de direitos, do Direito Administrativo Português prevsitas no artigo 268.º, nº4 da CRP e no artigo 37.º, alíneas a) e b) do CPTA.
· Acções gerais para o desempenho (instruindo as autoridades públicas a realizar uma actividade que não seja um acto administrativo em sentido estricto), que correspondem às acções de condenação do Direito Administrativo Portugês (artigo 37.º, nº 2, alíneas C), d) e e) do CPTA).

Para além destas acções regulares o Decreto dos Tribunais Administrativos prevê as providências cautelares e as medidas provisórias, com vista a garantir a tutela jurisdicional efectiva em casos urgentes. Também o Código de Processo nos Tribunais Administrativos Portugueses prevê processos urgentes nos termos dos artigos 97.º e ss e providências cautelares nos termos do artigo 111.º ao 134.º.
A propositura da acção nos tribunais administrativos alemães tem um efeito suspensivo dos efeitos do acto a não ser que lhe tenha sido atribuída provisoriamente força executória pela autoridade pública que o emitiu. Neste último caso, o efeito suspensivo poderá ser restabelecido por meio de medidas provisórias.
Conclindo, o modelo subjectivista de contencioso administrativo alemão, que tem vindo a influênciar o português ao ponto de se ter tornado a sua principal influência, caracteriza-se essencialmente pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares, por uma vasta panóplia aberta de meios processuais, pela igualdade das partes em processo (o particular é titular dos mesmos meios processuais que a Administração para fazer valer a sua posição no processo), pelas sentenças do tribunal que produzem efeitos interpartes e pelos meios de execução das sentenças.


Bibliografia:

- SILVA, Vasco Pereira da. “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo”, Almedina, 2ª edição, 2009

- ALMEIDA, Mário Aroso. "O novo regime do Contencioso Administrativo"

- SOMMERMAMN, Karl-Peter. "El papel de la Ley Alemana de la Justicia Administrativa para la realización del Estado de Derecho"

- RATHENAU, Alexander. "O deferimento tácito"

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