sábado, 31 de outubro de 2009

O Contencioso Administrativo pelas terras de Simão Bolívar




Conceda-se-me algumas linhas para a explicação da minha escolha: a opção de versar um pouco sobre o contencioso administrativo venezuelano não é inocente: na qualidade de madeirense, escolhi um país onde a presença portuguesa e, sobretudo, madeirense é, ainda hoje, bem marcante (a presença portuguesa na região data do século XVI, mas foi nas décadas de 40 e 50 do século passado que se registou um maior influxo de emigrantes portugueses, dos quais a esmagadora maioria era natural da Madeira, de Aveiro e de Coimbra). Devo, aliás, dizer que não conheço nenhum madeirense que não tenha ainda ou que não tenha já tido parentes na Venezuela e até um dos 23 estados venezuelanos recebeu o nome de Estado Portuguesa, em 1864. Pois bem, porque esse quase meio milhão de portugueses usufrui diariamente dos serviços da Administração Pública venezuelana, considero justificada a minha escolha.

A noção de contencioso administrativo na Venezuela:

Em sentido lato, entende-se por contencioso administrativo: “O conjunto de litígios nascidos dos actos administrativos e das operações materiais da Administração contrários ao Direito.” Em sentido restrito, traduz o conjunto de regras jurídicas que regem a solução pela via jurisdicional dos litígios administrativos”.

Também nas palavras de Auby y Drago, o processo administrativo caracteriza-se pela presença de um sujeito activo - El Administrado (denote-se o uso de uma expressão de cariz ainda autoritário) - e de um sujeito passivo (La Administración) e a resolução do conflito é feita por um órgão independente e imparcial com poderes para restabelecer a ordem jurídica ( Tribunal de lo Contencioso- Administrativo).

O contencioso administrativo na Venezuela, é, pois, composto, à semelhança de Portugal, por um conjunto de órgãos judiciais encarregados de velar pelo cumprimento do princípio da legalidade por parte da Administração Pública, isto é, nos actos e relações jurídico-administrativas originadas pela actividade administrativa.

Origem da jurisdição administrativa na Venezuela:

O surgimento do contencioso administrativo na Venezuela ocorre de forma quase contemporânea com o início da República, pois foi a Constituição de 1830 que, pela primeira vez, consagrou a competência da Corte Suprema de Justicia para “conocer de las controvérsias que resulten de los contratos o negociaciones que celebre el Poder Ejecutivo por sí solo o por médio de agentes”. Mas a maioria dos autores considera que o contencioso administrativo surge na Venezuela com a Constituição de 1925, que afirma critérios básicos que configuram um sistema contencioso administrativo, nomeadamente em matéria de contencioso de anulação. Josefina Calcaño de Temeltas aponta para o nascimento do contencioso administrativo, enquanto sistema, na Constituição de 1931: aí se consagrou de forma inédita a excepção de ilegalidade oponível a todo o tempo, um prazo de caducidade para o exercício do recurso contencioso administrativo de anulação (13 meses) e a ampliação a qualquer caso de ilegalidade ou situação de abuso de poder dos actos administrativos, isto é, começa-se a falar de um contencioso administrativo geral acentuando a matéria das demandas contra entes públicos e o âmbito contratual. A expressão “procedimiento Contencioso-administrativo” foi usada, pela primeira vez, na Constituição de 1947.

A base constitucional do contencioso administrativo na Venezuela:

O artigo 259.º da Constituição da República Bolivariana da Venezuela de 1999, aprovada por referendo popular em 15 de Dezembro de 1999 e que entrou em vigor no ano de 2000, consagra a jurisdição administrativa na Venezuela, quando dispõe:

La jurisdicción contencioso administrativa corresponde al Tribunal Supremo de Justicia ya a los demás tribunales que determine la ley. Los órganos de la jurisdicción contencioso administrativa son competentes para anular los actos admistrativos generales o individuales contrários a derecho, incluso por desviación de poder; condenar al pago de sumas de dinero ya a la reparación de daños y prejuicios originados en responsabilidad de la Administración; conocer de reclamas por la prestación de servicios públicos; y disponer lo necessário para el restabelecimiento de las situaciones jurídicas subjectivas lesionadas por la actividade administrativa”.

O artigo 259.º da Constituição encerra, pois, todo um sistema contencioso administrativo. O conteúdo do preceito (que, de alguma forma, correspondia no essencial a artigos de Constituições anteriores) apenas foi densificado após 1976, quando se promulgou a Ley Orgânica de la Corte Suprema de Justicia, que, nas suas disposições, estabelece toda uma organização estrutural da jurisdição administrativa e uma série de procedimentos respeitantes às acções e recursos que perante aquela se instauram. Esta lei orgânica corresponde, pois, à remissão do artigo 259.º quando afirma “los demás tribunales que determine la ley”.

O artigo 259.º faz, portanto, do processo administrativo uma plena jurisdição, sem que seja possível separá-la das demais jurisdições que integram o sistema venezuelano e , por isso, são-lhe aplicáveis todas as exigências que a Constituição estabelece para os tribunais.

Jurisdição administrativa:

O poder judicial na Venezuela exerce o controlo jurisdicional de todos os poderes públicos, sem que nenhum dos três escape ao seu controlo, particularmente ao controlo do tribunal do topo da hierarquia da estrutura venezuelana: a Corte Suprema de Justicia, com as suas diversas salas. A função primordial deste tribunal, nos termos do artigo 2.º da Ley Orgânica de la Corte Suprema de Justicia (doravante, L.O.C.S.J.) consiste no controlo directo da constitucionalidade e da legalidade dos actos do poder público (ao contrário, por exemplo, do sistema português que autonomizou a existência de um Tribunal Constitucional, de um Supremo Tribunal de Justiça e de um Supemo Tribunal Administrativo). Refira-se que Tribunal Supremo exerce o controlo do poder judicial pelo chamado recurso de Casasión (art. 42.º da L.O.C.S.J.), o controlo do poder legislativo nacional, estadual e municipal por meio da Acción de Inconstitucionalidad contra las leyes (art. 266.º da Constituição e art. 42.º da L.O.C.S.J.) e o controlo da constitucionalidade e legalidade das funções executiva e administrativa e outros órgãos do Estado de rasgo constitucional e autonomia funcional, mediante a Acción de nulidad e dos recursos contencioso-administrativos (art. 266.º, n.º 5 da Constituição e art. 42.º, nº 4, 10 e 12 da L.O.C.S.J).

A doutrina venezuelana demonstra um profundo conhecimento acerca da “infância difícil” do contencioso administrativo. Com efeito, quando aborda os antecedentes do processo administrativo, classifica a promiscuidade entre a função de julgar e de administrar e o termo “contencioso administrativo” como “unir en una sola palabra dos conceptos opuestos” cuja fonte de inspiração residiu num “falso concepto sobre sepración de los poderes estatales” e em “supuestos tan erróneos y circunstanciales”. (Brewer-Carías)

Não obstante, como sustenta Moles Caubet, não nos devemos esforçar para definir contencioso administrativo, porque a sua própria denominação nos indica o seu conteúdo: uma contenda ou controvérsia com a Administração porque se considera que um acto administrativo é ilegal ou ilegítimo ou porque uma actividade administrativa lesiona o direito do particular.

O Direito administrativo francês deu materialmente origem ao regime administrativo da maioria dos países latinos do mundo ocidental mas a Venezuela não absorveu a mesma influência no que toca à forma. Com efeito, o direito Administrativo não se construiu com base nos critérios de distinção entre jurisdição dos tribunais judiciais e jurisdição administrativa. A jurisdição administrativa na Venezuela assenta numa tradição bem consolidada de uma competência especializada de determinados tribunais para conhecer os litígios nos quais intervém a Administração, mas integrados no poder judicial.

Objecto da jurisdição administrativa:

A garantia do princípio da legalidade aplicado à Administração Pública, decorrente do Estado de Direito, está na possibilidade constitucionalmente aberta aos particulares de poder submeter toda a actuação administrativa ao controlo de órgãos judiciais especializados.

A matéria que integra o contencioso administrativo é o elemento que define a intervenção da jurisdição administrativa. Tal matéria é definida no artigo 259.º da Constituição de 2000: “contencioso de los actos administrativos generales ou individuales contrarios a derecho, de los contratos y de las actuaciones u omisiones de la Adminstración susceptibles de ocasionar responsabilidade patrimonial”. Em suma, todo o acto da Administração Pública está sujeito a controlo judicial (tanto no exercício de jus imperii, enquanto potestas administrativa, como nos vínculos jurídicos de direito privado, nomeadamente civil, comercial, laboral, etc.).

Não se admite já uma antiga tese jurisprudencial que defendia que os actos administrativos submetidos ao controlo dos tribunais administrativos eram apenas aqueles sujeitos ao direito administrativo (Teoría de los actos excluídos, considerada inconstitucional) . Afirma o Professor Brewer-Carías que “(...) todos los actos administrativos, por qualquier motivo de contrariedade al derecho están sometidos al control judicial por los órganos de la jurisdicción contencioso-administrativa (...)”. Poderíamos aqui empregar uma expressão da Professora Maria João Estorninho quando explica que uma “fuga para o direito privado” não significa uma “fuga às vinculações jurídico-públicas”. Está, logicamente, sempre presente uma autoridade administrativa de gestão de serviços públicos e, por isso, justifica -se uma unidade de jurisdição para qualquer actuação administrativa (note-se aqui a diferença com o direito português, por exemplo, o contraste com o artigo 4.º, n.º 3, alínea d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, respeitante a direito laboral administrativo e que tanto pode integrar a competência dos tribunais judiciais como dos administrativos).

Os principais meios processuais:

Os meios processuais à disposição do particular e previstos na L.O.C.S.J., dependem da forma que reveste a actuação administrativa.

Se o acto é de carácter geral, emanado dos corpos legislativos nacionais, estaduais ou municipais, ou do Poder Executivo, aplica-se o procedimento da acção de nulidade. Se tal acto é atacado por razões de inconstitucionalidade, o seu conhecimento é do Plenário e se o é por razões de ilegalidade, conhece da sua impugnação a Sala Político-Administrativa do tribunal de mais alta instância (o procedimento é sempre o mesmo e não possui prazo de caducidade.) Por ser um acto que afecta em igual medida toda a colectividade ou um sector da mesma, é um recurso objectivo e requer um procedimento especial de impugnação, caso em que, por vezes, pode entrar em jogo a figura da acção popular.

Se o acto impugnado é de efeitos particulares, isto é, um acto que se reporta a uma determinada pessoa ou a uma categoria de pessoas perfeitamente individualizadas, recorre-se ao procedimento do Recurso Contencioso administrativo de nulidad (corresponde na doutrina francesa ao recurso por excesso de poder) ou recurso de anulación. É um recurso subjectivo e, como tal, exige um “interesse qualificado do recorrente”, um prazo para impugnação do acto, entre outros requisitos. É necessário, na grande maioria dos casos, esgotar a via administrativa (recurso de reconsideratión e recurso jerárquico) para propor este tipo de acção (uma das excepções ocorre na situação de silêncio da Administração sobre a apreciação de uma garantia graciosa).

O artigo 122.º da L.O.C.S.J. consagra, igualmente, o princípio de “Solvet et repete”, considerado anacrónico e inútil e que se traduz numa limitação do acesso à justiça pelos particulares, prejudicando a sua garantia contenciosa e também uma violação do princípio da igualdade de partes. Eis uma das matérias em que a psicanálise não está em dia para o legislador, ainda que a doutrina o reconheça...

Os fugazes prazos de caducidade previstos para o recurso de nulidad de actos de efectos particulares consubstanciam, igualmente, uma limitação dos direitos dos particulares, salvo pequenas excepções.

Finalmente, cumpre apenas referir que na Venezuela, a regra é a não suspensão dos efeitos dos actos administrativos, em homenagem ao princípio de executoriedade (há uma presunção de legalidade e legitimidade dos actos administrativos). Parece-me, aqui, haver uma decorrência de uma ideia de supremacia da Administração pela prossecução do interesse público contra os interesses egoístas dos particulares. A doutrina chega mesmo a afirmar que apesar desta ideia não ter base alguma na Constituição, há uma “tradição autoritária do direito venezuelano”.

Apenas a título de enumeração, refira-se, ainda, alguns dos principais meios processuais presentes no contencioso administrativo venezuelano:

  • Demandas contra la Republica (arts. 103.º a 111.º da L.O.C.S.J.)
  • Recurso de Nulidad de los actos de efectos generales (arts. 112.º a 120.º da L.O.C.S.J.)
  • Recurso Contencioso administrativo de nulidad (actos de efectos particulares) - arts. 121.º a 129.º da L.O.C.S.J.
  • Recurso contra la abstención (homólogo da nossa acção de condenação à prática do acto devido)
  • Recurso de Interpretación
  • Recurso de Amparo, previsto na Ley Orgânica de Amparo sobre Derechos y Garantias Constitucionales (como a violação de direitos constitucionais acarreta a nulidade absoluta do acto, é possível a impugnação a todo o tempo).

Características do contencioso administrativo na Venezuela:

  • O processo administrativo assenta numa competência especializada, de natureza contenciosa e é um processo subjectivo (lógica de partes) e dispositivo.
  • A jurisdição administrativa está definida como função estadual.
  • O processo administrativo venezuelano exerce o controlo da legalidade e da legitimidade de toda a actuação administrativa.
  • O processo administrativo não constitui uma jurisdição especial.
  • Qualquer tese restritiva do controlo de actos da Administração Pública é inconstitucional.

Organização dos tribunais no contencioso administrativo da Venezuela:




Veja-se a imagem inserida.


* A Sala Político-Administrativa do Supremo Tribunal de Justiça está no topo da organização da jurisdição administrativa na Venezuela. É composta por cinco magistrados, tendo competência nacional e sede na cidade de Caracas.

** As Cortes Primera y Segunda do contencioso administrativo são compostas por 3 juízes cada uma, tendo igualmente competência nacional e sede na cidade de Caracas.

O contencioso administrativo especial:

  • Contencioso Administrativo Eleitoral (Ley Orgânica del Sufrágio y Participación Política, de 28 de Maio de 1998)
  • Contencioso Administrativo Agrário (Ley de Tierras y Deasarrollo Agrário, de 18 de Maio de 2005)
  • Contencioso Administrativo Tributário (Código Orgánico Tributário, aprovado a 17 de Outubro de 2001)
  • Contencioso Administrativo da Função Pública (Ley del Estatuto dela Función Pública, de 6 de Outubro de 2002)
  • Contencioso Administrativo “Inquilinário” (Decreto con Rango e Fuerza de Ley de Arrendamientos Inmobiliarios, de 7 de Dezembro de 1999)
  • Contencioso Administrativo da Prevenção, Condições e Ambiente de Trabalho (Ley Orgânica de Prevención, Condiciones y Médio Ambiente del Trabajo, de 26 de Julho de 2005).

Bibliografia:

  • BREWER-CARÍAS, Allan R., El Derecho Administrativo y la Ley Orgánica de Procedimientos Administrativos, Colección de Estúdios Jurídicos N.º16, Editorial Jurídica Venezolana, Caracas, 1999.
  • LEAL WILHELM, Salvador, Curso de Procedimientos Contencioso-administrativos, Ediciones Astro Data S.A., Maracaibo 1995.
  • LOPEZ MARTÍNEZ, Eduardo, Derecho contencioso administrativo, Universidad Rafael Belloso Chacín, Maracaibo, Diciembre 2000.
  • MARCHAN, Carlos, Las orígenes de la Jurisdicción Contencioso-Administrativa y el Contencioso-Administrativo en Venezuela, Catédra de Contencioso-Administrativo, 2005.
  • PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise -Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Novembro de 2005.
  • CONTITUCIÓN DE LA REPUBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA, Gaceta Oficial Extraordinaria N.º 5453 de 24 de marzo de 2000.
  • Ley Orgánica de la Corte Suprema de Justicia.
  • Ley Orgánica de Procedimientos Administrativos, Gaceta Oficial N.º 2.818 del 1 e julio de 1981.
  • http://www.tsj.gov.ve

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