sexta-feira, 23 de outubro de 2009

“Não Te Deixarei Morrer, Appoline Meeus!”



O “Conselho de Estado” Belga e a Separação de Poderes segundo Michel Leroy.

Depois da triste história de Appoline Meeus, uma explicação impõe-se, tanto acerca daquilo que é o sistema de contencioso belga e a sua evolução, como acerca do papel histórico e actual do "Conseil d'État".

1. Introdução

Por contraposição aos sistemas de tipo “Common Law”, o sistema judicial Belga pode ser classificado como uma “jurisdição especializada”. Mas no seio das jurisdições especializadas, podemos ainda distinguir entre “jurisdições integradas na ordem judiciária” e “jurisdições autónomas”. É nesta última que se integra o modelo Belga e, consequentemente, o seu Conselho de Estado (“Conseil D’État”).

Exemplo clássico de sistema de “Common Law” é o Reino Unido (ver este assunto mais desenvolvidamente no artigo O “Sistema Administrativo” Britânico do nosso colega Luís Vasconcelos).
Exemplo de jurisdicionalidade especializada é o da Republica Federal Alemã onde, para além de existir um tribunal constitucional, existem ainda cinco ordens jurisdicionais: ordinária (civil e penal), administrativa, financeira, laboral, e social. Este sistema jurídico pretende ser, ao inverso do sistema britânico que fora construído por factores históricos, uma construção simples, lógica e racional. Ele está ainda imbuído, como facilmente se depreende, numa lógica de integração dessa jurisdicionalidade especializada dentro da ordem judiciária.

Já de Jurisdições Especializadas e Autónomas são exemplos a Bélgica ou a Suécia. Este último pode considerar-se como exemplo “puro” ao invés daquele que se pode considerar “impuro”. Estes consideram-se de jurisdições especializadas porque os litígios existentes e suscitados pela acção administrativa são remetidos para jurisdições especializadas, isto é, à margem das instâncias judiciais que julgam litígios entre particulares apenas.
No caso da Suécia, o seu sistema foi o resultado de várias evoluções institucionais próprias e que levaram a que o Rei, aconselhado pelo Conselho de Ministros, se tornasse no último recurso contra qualquer acto administrativo. Contudo, se o Rei conservou essa competência em relação à maior parte dos casos, para outros foi criado em 1909 um Tribunal Supremo Administrativo que os julgaria fazendo um exame prévio ao do Rei, substituindo-se então nessa tarefa ao Conselho de Ministros. Este Tribunal Supremo não é competente quanto aos actos provenientes de decisões governamentais, mas apenas àqueles que provenham de autoridades inferiores.
Já no caso em análise, o caso belga, o sistema seguido foi o de se adoptar, inspirando-se no “Conseil d’État” francês, um Conselho de Estado (“Conseil d’État”). Os “Conseil d’État” caracterizavam-se pela reunião, em simultâneo e dentro de uma mesma instituição, de uma função consultiva [em relação às novas leis e regulamentos em projecto] e de uma função contenciosa. Assim, estes “Conseils” eram, ao mesmo tempo, conselheiros jurídicos oficiais dos sucessivos governos e juízes administrativos supremos.

2. O “Conseil d’État” e a Separação de Poderes

a. A Doutrina da Soberania Nacional

O artigo 33.º, primeira alínea, da Constituição belga dispõe da seguinte forma: “Todos os poderes emanam da Nação”. Esta norma não é uma regra de direito, mas sim um princípio de filosofia política, e como tal uma das poucas normas da Constituição com essa característica. Através deste artigo, o Congresso Nacional (“Congrès National”), assembleia eleita em Novembro de 1830 depois da revolução que levou à separação entre a Bélgica e a Holanda com o intuito de criar uma Constituição para o país, quis consagrar a doutrina da Soberania Nacional. Esta teoria atribui a autoridade suprema à Nação, considerada como conjunto ou entidade abstracta que teria uma existência distinta das pessoas que a constituem. Esta entidade fictícia seria detentora de todos os poderes, mas sem os poder exercer ela mesma, delegando assim o exercício desses poderes a diversas autoridades que agem em nome dessa mesma Nação. A consequência maior desta doutrina é que se todos os poderes emanam da Nação, todos têm uma igual legitimidade, sendo que pode ser posto em prática um sistema de equilíbrio de tal forma que os excessos de uma autoridade possam ser contidos por outra autoridade. Assim, uma vez estabelecido o pretendido equilíbrio, a noção de “autoridade suprema” detentora da soberania deixa de ter razão de ser, desaparecendo.

Contudo este conceito foi criado no contexto de uma monarquia absoluta, ao qual assentava como uma luva. Mas num regime em que vigore a separação de poderes, nenhuma autoridade pode ser considerada “soberana”: até mesmo o legislador constituinte está limitado nas suas competências pelas normas que se querem revistas em relação ao anterior regime.

b. A influência do Conceito de Separação de Poderes

Este equilíbrio institucional posto em marcha pela teoria da Soberania Nacional encontra o seu fundamento na noção de “separação de poderes” enquadrável na obra de Montesquieu intitulada “L’Esprit des Lois”, sendo que a sua primeira aplicação prática foi a da constituição francesa de 1791. Apenas a sua ideia de fundo, e não a constituição em si, teve impacto no território e na construção jurídica belga. Ela teve as suas primeiras influências a partir da segunda metade do século XIX proibindo os tribunais de condenarem, em qualquer caso, a Administração Pública.
Mas logo, o artigo 159.º da Constituição veio permitir aos juízes e tribunais onde exercem funções o poder de não aplicarem os actos ou regulamentos administrativos se estes não forem conformes à Lei, isto é, permite aos juízes limitar o poder executivo e todas as autoridades administrativas. Este artigo revela-se então exemplo típico de um equilíbrio entre os grandes poderes constitucionais, consequência da aplicação da teoria da separação de poderes, um exemplo clássico de “freins et contrepoids” típico dos modernos regimes parlamentares.
Mais tarde, a introdução do “recours en annulation” (recurso de anulação) como nova arma ao dispor do “Conseil d’État” veio dar um passo adiante em relação à ideia que o artigo 159.º tinha já estabelecido, permitindo aos particulares lesados por um acto administrativo ilegal obterem não apenas uma simples declaração de ilegalidade cujos efeitos apenas se circunscreviam a um determinado processo, mas já uma anulação que eliminava para sempre, e com efeitos retroactivos, o acto anulado.

c. A Posição Institucional do “Conseil d’État”

Nem sempre foi a mesma a posição institucional adoptada para o órgão em causa. A partir de 1936, o “Conseil” passou a estar ligado ao poder executivo sendo um “conselho adjunto do governo”. Isto porque ele exercia também uma função consultiva de apoio ao governo pedindo a opinião ao conselho, mas também porque a partir da manifestação de Wodon os parlamentares belgas atribuíram-lhe uma jurisdição delegada quanto ao contencioso de anulação. Durante a criação do “Conseil” um senador disse: “O Conseil D’État não será mais do que um ramo do poder executivo […] É o poder administrativo que se desmembra e reparte melhor a sua actividade; quando o Conseil d’État julga, será ainda a administração a julgar”. Esta era, de facto, a opinião comummente aceite aquando da criação do “Conseil”, mas é certo que pode criar uma certa reticência: a ideia de que o poder executivo se controle a si próprio parece ser uma ideia bastante falível; mais, será que não é um contra-senso na perspectiva da teoria de Montesquieu?

Na perspectiva de Michel Leroy, a resposta a estas duas questões não pode deixar de ser negativa, por duas ordens de razão:

- Primeiramente porque a afirmação de que o “Conseil” faz parte do poder executivo parece ter sido apenas construída para não suscitar querelas jurídico-constitucionais que pudessem despertar o medo de se ver criado um órgão que escapasse à tradicional classificação de poderes (legislativo, executivo e judicial). Contudo esta integração no seio do poder executivo não corresponde à realidade, uma vez que o poder executivo, como consagrado na constituição, pertence ao Rei, sendo que o mesmo nada pode impor ao “Conseil”, tendo até menos poderes em relação a este do que em relação a certas jurisdições (que já são poucos; por exemplo, em relação a elas, ainda que pertençam a um outro poder constitucional, é o Rei que nomeia os seus magistrados).
Por um lado a Secção de Legislação é um colégio, normalmente consultivo, que apenas assiste os poderes legislativos e executivos no exercício das suas funções normativas. Por outro lado, a secção administrativa é uma jurisdição bastante próxima do funcionamento da administração, mas dela bem distinta (tanto pela sua actividade como pelo estatuto dos seus membros) e apresentando grandes semelhanças com as jurisdições jurídicas belgas. A única constatação que permitiria ligar este “Conseil” ao poder executivo é a de que os fundos necessários ao funcionamento deste órgão estão sob a alçada do orçamento do ministério do interior e não sob a do ministério da justiça.

- Em segundo lugar, ainda segundo este Professor, parece sobretudo ser a Teoria da separação de poderes que tem sido mal percebida (e que sempre o foi) desde a sua criação por Montesquieu. É que esta funda-se na observação do seu autor em relação às instituições inglesas do século XVIII, e não se pode perder de vista o facto que o sistema britânico de então apenas tinha uma organização política embrionária quando comparado com as instituições modernas. Assim sendo, aplicar esta teoria aos Estados contemporâneos parece ser um instrumento de análise bastante “grosseiro”.

3. As Competências do “Conseil d’État”

a. Introdução: As Competências em Geral

As competências administrativas do “Conseil d’État” são o reflexo da sua dupla função: tanto conselheiro do governo (ao qual se juntaram recentemente os governos regionais e das comunas) como juiz. Este órgão tem tanto competências consultivas como competências litigiosas.
As competências consultivas são de dois tipos: os pareceres (“avis”) sobre questões administrativas não litigiosas, e sobre questões mineiras.
As competências litigiosas abrangem o contencioso de anulação, o contencioso da “cassation” administrativa, o contencioso de plena jurisdição (“contencieux de pleine jurisdiction”), o contencioso de indemnização (“contentieux de l’indemnité”), e o contencioso de conflitos de competência entre autoridades e entre jurisdições administrativas (“contencieux des conflits de compétence entre autorités et entre jurisdictions administratives”).

b. Os Pareceres sobre Questões Administrativas Não Litigiosas

Os ministros, os membros dos governos das comunas e regionais e os membros do colégio da comissão comunitária francesa e os do colégio da comissão comunitária de Bruxelas podem submeter ao parecer do “Conseil” qualquer questão de ordem administrativa, desde que não litigiosa.

Uma diversidade de questões pode ser neste âmbito suscitada: aplicação de leis e regulamentos, por exemplo, não sendo para tal necessário que tenha havido qualquer tipo de contestação. As únicas restrições quanto à competência dizem respeito à natureza administrativa da questão suscitada e ao seu carácter não litigioso. Por um lado, os pedidos sobre problemas legislativos ou sobre execução de sentenças, ainda que provenientes de secções administrativas, não serão tidas em conta. Por outro lado, o carácter não litigioso de uma questão não resulta apenas da ausência de um processo a correr numa qualquer jurisdição, mas resulta, ainda, da ausência de um processo eminente ou da sua alta probabilidade. Serão ainda tidas em conta como litigiosas, todas aquelas questões que suscitam polémicas ou tomadas de posição antagónicas, seja entre instituições, seja no meio político. Este órgão evita que a sua competência o leve a tomar partido em questões que estejam em aberto na “praça pública”.

c. As Competências Contenciosas

A lei confere à secção administrativa do “Conseil d’État” seis tipos de competências contenciosas de diferente importância.
O Contencioso de conflitos de competência entre autoridades administrativas e de conflitos de competência entre jurisdições administrativas são hoje praticamente letra morta uma vez que estes deixaram de existir.
O Contencioso de indemnização ainda persiste mas apenas pelo princípio que consagra mais do que pelo número de litígios.
O Contencioso de plena jurisdição tem sobretudo que ver com as eleições comunais. De seis em seis anos vários recursos são interpostos neste âmbito.
O Contencioso de anulação é de longe a actividade mais importante da secção administrativa, tanto pelo número de litígios (mais de 8000 por ano) quanto pelo rigor que implica no que concerne ao controlo sobre a actividade da administração.

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Referências Bibliográficas:
- LEROY, MICHEL, Contencieux Administratif, Précis de La Faculté de Droit Université Libre de Bruxelles, Bruylant 2004.
- http://www.senate.be/doc/const_fr.html#s332

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