sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Competência material dos tribunais administrativos e fiscais - Uma questão ainda não resolvida

Competência material dos tribunais administrativos e fiscais nas acções para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público – Uma questão ainda não resolvida.

Esta questão surgiu a propósito da primeira hipótese prática que integra o tema do “Âmbito de jurisdição”, na qual se apresentava a pretensão de um particular em demandar o Ministério das Obras Públicas para accionar a sua responsabilidade civil extracontratual, com vista a ressarcir-se dos danos sofridos em consequência de acidente de viação, envolvendo viatura do referido Ministério. Perguntava-se, então, qual a jurisdição competente para resolver o litígio.
Resolveu-se esta hipótese à luz da alínea g), do n.º 1, do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), sublinhando-se que, com esta disposição, a questão estaria resolvida, contrariamente ao que se verificava durante a vigência do anterior ETAF, atribuindo-se o seu conhecimento aos tribunais administrativos.
Vim, porém, a perceber que esta conclusão aparentemente simples, e a questão que a subjaz, não são tão adquiridas como faziam parecer, sendo, ainda, actualmente, objecto de grandes divergências, patentes em soluções muito diferentes na jurisprudência, quanto à jurisdição competente.
A este propósito, deixam-se algumas reflexões.

No domínio do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27 de Abril, observou-se uma profunda divisão sobre a competência jurisdicional para o conhecimento das acções intentadas contra o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público visando a efectivação da responsabilidade extracontratual. Tendo por base a proveniência do acto (acção ou omissão) gerador dos danos a ressarcir – acto de gestão pública ou acto de gestão privada –, entendia-se que a competência pertencia ao tribunal judicial comum no caso de responsabilidade fundada na gestão privada daquelas entidades públicas, cabendo à jurisdição administrativa o conhecimento das acções de responsabilidade decorrente de actos de gestão pública.

Considerava-se, então, que se integravam nos actos de gestão pública os praticados por órgãos ou agentes da Administração no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público. Já os actos de gestão privada compreendiam os praticados por órgãos e agentes da Administração quando esta aparece despida de poder público, numa posição de igualdade com os particulares a que os actos respeitam, e, por isso, nas mesmas condições e no mesmo regime em que procederia um particular, com sujeição às normas do direito privado.

Nesta perspectiva, considerava-se que a circulação rodoviária de um veículo do Estado – factualidade da hipótese prática que analisámos em aula – constituía gestão privada, pertencendo ao tribunal comum a competência para conhecer de uma acção intentada contra o Estado para ressarcimento dos danos resultantes de acidente de viação causado por tal veículo.

No entanto, relativamente a muitos outros eventos danosos não era fácil determinar se eles provinham de uma actividade de gestão pública ou de gestão privada (ex. os danos resultantes de falta de sinalização de obstáculos nas vias públicas, os danos decorrentes de obras, etc). Sucediam-se, então, sucessivas deduções da excepção da incompetência em razão da matéria que, julgada procedente, determinava a absolvição da instância, com os inerentes prejuízos ao nível da rapidez na realização da justiça e ao nível dos custos patrimoniais decorrentes dos recursos que se interpunham. A muito abundante jurisprudência que, sobre o tema, se foi produzindo é reveladora do estado de incerteza e imprevisibilidade que gerava um sistema baseado na dicotomia gestão pública - gestão privada.

O novo ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, terá pretendido alterar a situação descrita, enchendo de esperança os aplicadores das suas normas quanto à resolução da questão exposta.

Continuando a assentar o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal no conceito de «relações jurídicas administrativas e fiscais», como a Constituição da República (CRP) determina (v. art. 212.º, n.º 3, da CRP e art. 1.º, n.º 1, do ETAF), o art. 4.º, n.º 1, nomeadamente nas suas alíneas g) e h), integra no âmbito da jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes.

Optou-se, como se refere na exposição de motivos da proposta de lei n.º 93/VIII, que deu origem à Lei n.º 13/2002 [pode ser consultada no site da Assembleia da República, em http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DiplomasAprovados], «[…] dando resposta a reivindicações antigas, por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado; já em relação às pessoas colectivas de direito privado, ainda que detidas pelo Estado ou por outras entidades públicas, como a sua actividade se rege fundamentalmente pelo direito privado, entendeu-se dever manter a dicotomia tradicional e apenas submeter à jurisdição administrativa os litígios aos quais, de acordo com a lei substantiva, seja aplicável o regime da responsabilidade das pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função administrativa».

Julgava-se, então, que as questões que, durante tanto tempo, se suscitaram quanto à delimitação das competências das duas ordens jurisdicionais (comum e administrativa) tivessem sido sanadas e ultrapassadas.
Algumas delas foram-no efectivamente (as acções de responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional ou legislativa). Outras, porém, continuam a ser debatidas nos tribunais, com a particularidade de, agora, se questionarem situações que, no domínio de vigência do anterior ETAF se encontravam resolvidas (p. ex., as acções emergentes de acidente de viação com intervenção de veículo do Estado).
Assim, foi com grande surpresa que verifiquei que continuam a ser suscitadas nos tribunais questões de (in)competência em razão da matéria, podendo referir-se o entendimento de alguns tribunais judiciais (de 1.ª instância e da Relação), recuperando os conceitos de gestão privada/gestão pública como critérios de delimitação da competência material nas acções de responsabilidade aqui em causa.
Acrescenta-se, por outro lado, o argumento da natureza da relação jurídica que se configura como causa de pedir nas acções, recorrendo-se ao comando constitucional contido no art. 212.º, n.º 3, da CRP, segundo o qual,

«compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Nesta perspectiva, alguma jurisprudência considera que uma acção emergente de acidente de viação proposta contra pessoa colectiva pública (Estado, por ex.) deverá ser proposta no tribunal de jurisdição comum (tribunal judicial) por, em regra, não se estar perante uma relação jurídica administrativa, nem perante uma actividade inserida na gestão pública levada a cabo por tais entidades.
Introduzem-se, em seguida, algumas decisões jurisrpudenciais (disponíveis, em texto integral, nas Bases Jurídico Documentais da DGSI, em http://www.dgsi.pt.) ilustrativas da referida apreciação dos litígios, retirando competência material à jurisdição administrativa.

Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo: 7560/06-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 02-11-2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE

Sumário:
O acto de circulação automóvel de um veículo do Estado, interveniente num acidente que dá causa à acção e que nela se discute, não se compreende no exercício de um poder público, nem na realização de uma função pública, estando, desta sorte, excluído do âmbito de previsão do artigo 4º, nº1, alínea h) do ETAF.

Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo: 0731515
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores:COMPETÊNCIA MATERIAL; JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA; TRIBUNAL COMUM; PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO; RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 12-04-2007
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário:
I - No âmbito de aplicação do novo E.T.A.F. (Lei nº 13/2002, de 19.02 com subsequentes alterações) sendo demandadas "pessoas colectivas de direito público" com base na respectiva responsabilidade civil extracontratual, devem sê-lo na jurisdição administrativa no caso de o acto lesivo dos interesses do terceiro demandante ser qualificados como acto de gestão pública - devendo, ao invés, tal demanda correr nos tribunais comuns, no caso de tal acto ser qualificado como de gestão privada.II - Não sendo clara a competência da jurisdição administrativa para apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade extracontratual de tais pessoas pelos danos decorrentes da sua actividade, não pode deixar de valer a regra geral da competência residual dos tribunais judiciais comuns.III - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação do litígio que tenha por objecto a efectivação do direito de indemnização decorrente de acidente de viação provocado por existência de lama e água na via pública, pois trata-se de apurar a responsabilidade extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público (E.P.-Estradas de Portugal) por omissão do seu dever de manutenção, fiscalização e administração, deveres esses que exerce no âmbito da sua “auctoritas pública” (ius imperii).

Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores:
COMPETÊNCIA MATERIAL; TRIBUNAL ADMINISTRATIVO; RESPONSABILIDADE CIVIL
Data do Acordão: 06-02-2007
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO

Sumário:
I- A Constituição da República Portuguesa prescreve no artigo 212.º/3 que “ compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, ou seja, limita a competência daqueles aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.II- Por isso, não obstante a actual redacção do artigo 4.º/1, alínea g) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) prescrever que compete aos tribunais de jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público […]” isso não significa que a competência dos tribunais administrativos tenha passado a abranger litígios emergentes de relações que não sejam de direito administrativoIII- Assim, demandada empresa pública visando a sua responsabilidade por dano emergente de questão de direito privado ( prejuízos sofridos por uma menina que entalou os dedos nos orifícios de um banco metálico para utilização de passageiros em estação de caminho de ferro, o que levou ao seu internamento hospitalar a fim de, com anestesia geral, serem libertados os seus dedos presos e imobilizados) são os tribunais comuns os competentes em razão da matéria


Já a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal dos Conflitos [tribunal que intervém nos termos do disposto no art. 107.º, n.º 2, do CPC, ou seja, quando a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, determinando qual deles é o materialmente competente] aponta no que entendo ser o sentido desejado pelo legislador com a reforma do contencioso administrativo, ou seja, no sentido do alargamento da jurisdição administrativa, competindo a esta o julgamento das causas em que o Estado ou outra pessoa colectiva pública seja parte, independentemente da natureza da relação jurídica.

Por conterem elementos que podem ser úteis para o estudo desta questão, inserem-se algumas decisões jurisprudenciais proferidas sobre a temática abordada, disponíveis, em texto integral, nas Bases Jurídico Documentais da DGSI, em http://www.dgsi.pt.

Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 05B2294
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores:
COMPETÊNCIA MATERIAL; TRIBUNAL ADMINISTRATIVO; RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL; VALORES MOBILIÁRIOS
Data do Acordão: 11-10-2005
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO

Sumário :
1. É da competência do tribunal administrativo a apreciação de uma acção de indemnização por responsabilidade extracontratual, decorrente de actuação (ou não actuação) ilícita de uma Autoridade de Regulação Económica, actuando no exercício de autoridade.2. A determinação da natureza pública ou privada da relação litigiosa, ao tempo da acção, e a consequente determinação do tribunal competente para dela conhecer, devem considerar a acção (pedido e causa de pedir), tal como configurada pelo autor, tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem da exacta configuração dos termos da causa proposta.3. No caso, em concreto, a configuração da acção feita pelo autor mostra que não está em apreço judicial uma questão de direito privado donde resulte a obrigação de indemnizar solicitada, mas, essencialmente, e apenas, uma questão de direito público, relativa à licitude ou não, da actuação da CMVM, como Entidade Reguladora Independente do mercado a que se dirige, conforme aos seus estatutos e ao CVM, em particular, o art. 353.º (atribuições) do CVM.4. Consequentemente, estando em causa a apreciação de uma relação jurídica de direito administrativo, cuja ofensa veio alegadamente a dar causa à obrigação de responsabilidade civil extracontratual que se pretende fazer valer através da acção, o tribunal comum - neste caso cível - é incompetente em razão da matéria, para dela conhecer.5. A partir da vigência da nova reforma do contencioso administrativo - Janeiro de 2004 - deixa de relevar a distinção entre regime de direito público e regime de direito privado, como critério de determinação da competência judiciária - administrativa ou comum, respectivamente - para conhecer da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.6. A alínea g), do n.º 1, do art. 4.º do novo ETAF determina que “compete aos tribunais de jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto (…) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…)”, independentemente da natureza do regime de direito público ou privado aplicável à relação litigiosa.

Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 07B1477
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores:
ACIDENTE DE VIAÇÃO; ACIDENTE DE TRABALHO; CONTRATO DE SEGURO; SUB-ROGAÇÃO; RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO; FUNCIONÁRIO; COMPETÊNCIA MATERIAL; TRIBUNAL COMUM; TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 27-09-2007
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário :
I - De acordo com as novas regras do ETAF, compete à jurisdição administrativa o julgamento das causas em que o Estado seja parte, independentemente de a relação jurídica em litígio ser regulada pelo direito privado ou pelo direito administrativo.II - Os tribunais comuns são materialmente incompetentes para apreciar os pedidos de responsabilidade extracontratual, baseados em factos praticados por servidores do Estado.

Acórdãos T CONFLITOS
Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo: 013/07
Data do Acordão: 26-09-2007
Tribunal: CONFLITOS
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; ACIDENTE DE VIAÇÃO MILITAR; ESTADO; COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:
Sendo o Estado uma pessoa colectiva de direito público e pretendendo o Autor accionar a sua responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respectiva acção, nos termos do art 4º nº1 al. g) do ETAF02.

Acórdãos T CONFLITOS
Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo: 017/07
Data do Acordão: 23-01-2008
Tribunal: CONFLITOS
Relator: POLÍBIO HENRIQUES
Descritores:
CONFLITO DE JURISDIÇÃO; RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL; COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO; COMPANHIA DOS CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES - REFER EP

Sumário:
I - A “Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” (CP) e a “Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P.” (REFER) são pessoas colectivas de direito público, por expressa determinação do direito positivo.II - Nos termos previstos no art. 4º/1/g) do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19.2, compete ao juiz administrativo conhecer de acção instaurada contra aquelas entidades, para efectivação de responsabilidade civil extracontratual emergente da colisão de um comboio com um veículo automóvel, numa passagem de nível da linha do Leste.III - Cabe, igualmente, ao juiz administrativo, de acordo com o disposto no art. 4º/1/h) do ETAF, conhecer da questão da responsabilidade civil extracontratual dos servidores daquelas mesmas pessoas colectivas de direito público, por danos ocorridos no exercício das suas funções e por causa delas, qualquer que seja o regime do seu trabalho e qualquer que seja a natureza da actividade causadora do dano.


Relativamente ao argumento que se pode retirar do citado art. 212.º, n.º 3, da CRP, importa ter presente que, como é salientado na exposição de motivos da proposta de lei n.º 93/VIII, também já mencionada, «a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”. Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado»

A doutrina orienta-se também no sentido do alargamento da jurisdição administrativa visado pelo novo ETAF. Assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera que «no que especificamente diz respeito aos danos emergentes da actuação da Administração Pública, o preceito [art. 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF] não distingue […] consoante essa actuação seja ou não desenvolvida no exercício da função administrativa, na imediata prossecução de fins públicos, ao abrigo de disposições de direito administrativo, etc. Ora, onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir. Todos os litígios emergentes de actuações da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade civil extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos» (O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, Revista e Actualizada, Almedina, 2003, p. 93).
No mesmo sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, embora admita que «há-de ser a jurisprudência a determinar em que medida houve ou não alargamento» (A Justiça Administrativa (Lições), 9.ª edição, Almedina, 2007 (pp. 117-118), e MÀRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, volume I, e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Anotados, Almedina, 2004, p. 59.
Também o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA sublinha a necessidade de se introduzir coerência ao sistema, «pela unificação no âmbito da jurisdição administrativa da competência para conhecer dos litígios relativos a todas as funções estaduais (...), assim como deve implicar pôr termo a indesejáveis dualidades de regimes jurídicos, baseados em ilógicas e artificiais distinções como a de gestão pública e de gestão privada» [O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Almedina, 2009, p. 237].

A questão que ora se apresenta assume particular relevância na medida em que, perante cada caso que nos venha a ser colocado, teremos de a enfrentar e resolver previamente. Em que jurisdição deveremos propor uma acção com as características apontadas? Refira-se que não é destituída de consequências a opção tomada, na medida em que a parte contrária pode deduzir a excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, a qual determina, como é sabido, absolvição da instância [v. arts. 288.º, n.º 1, al. a), 493.º, n. 2, e 494.º, al. a), do CPC].

Como procurei expor, observa-se ainda hoje uma grande divergência de decisões jurisprudenciais sobre a questão da competência material dos tribunais administrativos e fiscais nas acções para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Esta questão não está, de todo, resolvida.

E que fundamentos adoptar para o desejado alargamento da jurisdição administrativa?
O critério substantivo inerente ao conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, que se retira do n.º 1 do art 1.º do ETAF e da Constituição, é incontornável. Mas deverá, contrariamente à intenção do legislador, elevar-se a “dogma”?
E como se conjuga com a alínea g) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, fruto da desejada “liberdade de conformação do legislador”?
Vamos procurar encontrar uma solução, que nos traga mais sossego.

Outra bibliografia:
“Linhas gerais da reforma do contencioso administrativo”, Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, 2003, com a colaboração do Prof. Doutor Mário Aroso de Almeida e da Dra Cecília Gagliardini Graça, pp. 11-26).


Sara Augusto de Matos

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