terça-feira, 20 de outubro de 2009

"La Triste et Édifiante Histoire D’Appoline Meeus" - Uma Questão de Separação de Poderes



E se o Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva tivesse nascido, vivido, estudado e leccionado na Bélgica? Bem. Muito provavelmente o Professor seria Belga e daria as suas aulas em Françês (ou em Flamengo). Mas mais interessante ainda é que, muito provavelmente, em vez de termos ouvido a historia da Agnès Blanco, originária de um país não muito distante e com quem os cidadãos do Royaume de Bélgique não mantêm relações muito cordiais, teriamos ouvido falar de uma certa Appoline Meeus...

É que em 1865 vivia em Liège (Bélgica) uma jovem rapariga de 21 anos originária de Louvain chamada Appoline Meeus. Infelizmente, para seu destino, servia à mesa num cabaret, onde também vivia.

A lei da comuna, no seu artigo 96 dispunha da seguinte forma:

“Compete ao Collège des Bourgmestre et Échevins [Colégio competente para o julgamento de todas as questões relacionadas com a gestão corrente da Administração da Comuna] a vigilância das pessoas e dos locais notoriamente destinados à libertinagem.
Cabe-lhe tomar as medidas necessárias para assegurar a segurança, a moralidade e a tranquilidade pública.
O Conselho [da Comuna – onde estão presentes todos os Conselheiros da Comuna de todas as tendências políticas e o Colégio e que aborda todas as questões essenciais da politica da comuna, como a sua política orçamental, os investimentos, ou obras públicas que envolvam grandes despesas na base dos elementos que lhe são fornecidos pelo Conselho] emitirá os regulamentos que julgue úteis e necessários.”

Em aplicação deste artigo, diversas comunas, entre as quais a Comuna de Liège, adoptaram regulamentos que prescreviam a inscrição de prostitutas num “registre des filles publiques” (traduzindo à letra, “registo das mulheres públicas”) e que obrigava as pessoas inscritas a se submeterem duas vezes por semana a uma inspecção médica.

Appoline foi inscrita neste registo (não se sabe bem porquê ou em que circunstancias mas põem-se algumas hipóteses imaginárias: um polícia tê-la-há confundido com outra pessoa? Seria uma vingança após uma eventual rejeição amorosa? O que é certo é que uma vez inscrita, Appoline tornou-se, legalmente, uma prostituta e seria tratada como tal). Contudo afirmava não se prostituir e como tal recusou submeter-se aos exames médicos.

Logo, foi chamada ao “Tribunal de Police” [jurisdição penal de primeira instância] e condenada ao pagamento de uma multa. Recorreu da decisão. O “Tribunal Correctionnel de Liège” [jurisdição penal ainda de primeira instância, e dentro do Tribunal de Police] autorizou-a a provar que não se prostituía. Na sentença lia-se:

“Não se pode retirar do direito à vigilância descrito na lei, o direito de concluir irrevogavelmente pela prostituição de uma determinada pessoa; […] antes, pelo contrário, é essa mesma prostituição que serve de base a que as mulheres que exercem esse vergonhoso ofício possam ser submetidas a essa mesma vigilância, […] sendo que esta última só pode ser legitimamente exercida quando aquele facto [o do exercício do vergonhoso ofício] esteja claramente provado; […] a autoridade administrativa […] não pode substituir-se à autoridade judicial no direito de conhecer sobre a efectiva existência do facto em causa”.

Concluiu-se que o cabaret onde Appoline servia não era nem uma casa de alterne autorizada (isto porque, à data dos factos, esses estabelecimentos estavam submetidos a autorização), nem um estabelecimento de “débauche clandestine” (traduzindo literalmente, um estabelecimento de “libertinagem clandestina”). Como a conduta da ré não era ilegal, foi absolvida.

O Procurador do Rei levou o caso à “Cour de Cassation” [órgão supremo do sistema judicial]. Aqui, as coisas começaram a correr mal para Appoline. Para este órgão, “a inscrição no registo de prostituição, assim como a investigação e apreciação dos factos que lhe dão origem, são actos administrativos; […] nenhuma disposição da lei faz […] depender a aplicação destas medidas da intervenção do poder judicial e não as submete ao seu controlo; […] não cabe [ao tribunal] apreciar a necessidade ou a oportunidade da decisão de inscrição em função da conclusão dos factos que lhe deram origem, nem paralisar os efeitos de um acto legalmente emanado de uma autoridade competente”.

Assim, o caso de Appoline foi remetido para o “Tribunal Correctionnel de Huy”, começando a desenhar-se à volta dele uma luta entre os juízes e a administração.
Escreve o juiz deste tribunal: “a autoridade municipal não pode substituir a sua apreciação à do juiz, fazendo resultar a notoriedade da prostituição de uma inscrição formal, e sem qualquer tipo de garantias, sem ameaçar a essência da jurisdição […]. Ao admitir que as pessoas que foram inscritas façam prova de que não se entregam notoriamente ao exercício da prostituição […], os tribunais, longe de se imiscuírem dos poderes municipais, apenas actuam no exercício das suas próprias atribuições”.
Como se deduzia do processo que a ré tinha uma conduta “virtuosa”, Appoline foi novamente absolvida.

Mas como os verdadeiros pesadelos nunca acabam, a “Cour de Cassation” foi outra vez chamada a pronunciar-se. Ao contrário do que se passara anteriormente, Appoline encontrou um defensor à medida do caso e que exercia, então, o cargo de Advogado Geral (“Avocat Général”), o Senhor Mathieu Leclercq.

A argumentação do “Avocat Général” baseava-se em dois grandes pontos: a relação entre a lei e o regulamento da comuna, e o Princípio da liberdade Individual.

i. Leclercq afirmava que os Conselhos das Comunas não podiam dispor sobre a prostituição, mas apenas sobre a libertinagem notória. Se vierem reger sobre a situação das pessoas cuja libertinagem não fosse notória, estariam a exceder o âmbito da sua competência, e cuja consequência seria a não aplicabilidade dos regulamentos em causa por parte dos tribunais (artigo 159.º da Constituição). Assim sendo, compete ao juiz verificar se a notoriedade da libertinagem existe ou não.

ii. Quanto à liberdade individual, Leclercq, desenvolveu a questão bem ao seu estilo. No essencial afirmou o seguinte:
“A Constituição garante-a [a liberdade individual] formalmente a todos os Belgas; ela apenas permite punir judicialmente quem a violar se esse caso estiver previsto na lei, e como essa liberdade é um direito civil, o primeiro, o mais precioso de todos os direitos civis, os órgãos judiciais são exclusivamente competentes para conhecerem dos casos em que se atinja a liberdade individual; quanto a este ponto, a autoridade dos tribunais é totalmente soberana e legítima […]
Ora, o regulamente da comuna de Liège […] e os actos administrativos desta cidade tomados em execução daquele regulamento afectam profundamente a liberdade individual das mulheres eventualmente em causa […]”.
Logo que alguém indicasse à polícia uma mulher que supostamente se entregava à libertinagem, ela era chamada ao posto, e se não comparecia ou o fizesse mas não desse suficientes explicações julgadas satisfatórias, era logo inscrita no registo das mulheres públicas.
“A partir desse momento era afectada na sua honra, mas não apenas; a partir desse mesmo momento, para além de outras obrigações pessoais que afectavam em diferentes medidas a sua liberdade, o seu corpo deixava de lhe pertencer; era obrigada a submeter-se a uma inspecção levada a cabo por um homem que […]”.
“Eis, em toda a sua crueza, a consequência do regulamento e do acto de inscrição em relação às mulheres em causa; ele violava profundamente a liberdade individual das mulheres […]”.

Concluindo, rematava: não admitir o controlo jurisdicional seria entregar as mulheres ao arbítrio da administração, “ou seja, entregar ao que há de mais contrário à organização legal e constitucional da Bélgica”.

Resposta da “Cour”:

“Visto que o Princípio da Separação de Poderes se opõe a que os tribunais conheçam dos actos administrativos para paralisar os efeitos dos ditos actos; então […] não compete ao Tribunal de Huy o conhecimento dos efeitos da medida administrativa, nem a decisão de que a ré não se entregava notoriamente à libertinagem”.

O que aconteceu? O julgamento baixou ao Tribunal de Verviers ficando este obrigado a conformar-se com o Direito enunciado pela “Cour”.

*

Conclusões a retirar:

- Este processo – verdadeiramente infeliz – mostra até que ponto podem ir as formidáveis aberrações conduzidas pela falta de controlo da administração. Mesmo após ter convencido dois tribunais, Appoline continuou inscrita no registo sem qualquer possibilidade de recurso.

- Parafraseando Michel Leroy, na sua língua materna, “ce procès montre aussi un monde judiciaire fermé, concevant le droit comme une mécanique intellectuelle plus que comme un régulateur de la société; un monde que est lui-même le reflet d’un regime électoral censitaire réservant le monopole de la vie publique à quelque deux pour cent de la population, triés sur base de la fortune.”

- Acrescentaríamos: mais do que um “monde judiciaire fermé”, este exemplo revela o equívoco histórico acerca da noção de separação de poderes. É que, de facto, ela não é uma separação estanque e pressupõe, pelo contrário, ainda o controlo dos poderes por todos os restantes, pressupõe interdependência entre poder Judicial, Legislativo e Executivo.

Referências Bibliográficas:
- LEROY, MICHEL, Contencieux Administratif, Bruylant - Précis de La Faculté de Droit Université Libre de Bruxelles, 2004.
- http://fr.wikipedia.org/wiki/Organisation_juridictionnelle_(Belgique)

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