quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Contencioso Administrativo Moçambicano

Na sequência do desafio lançado pelo Professor Vasco Pereira da Silva na última aula teórica, publico em seguida um pequeno texto acerca do Contencioso Administrativo moçambicano, ensaiando uma breve comparação com alguns aspectos do seu homólogo português, tendo em conta os conhecimentos já adquiridos ao longo das aulas. A escolha de Moçambique prende-se com uma duplicidade de motivos: o facto de ser uma ex-colónia portuguesa e de ter encontrado bastante informação online acerca do assunto, já que a nossa biblioteca dispunha de pouca informação sobre Contencioso Administrativo Comparado (e a que estava disponível era, digamos, algo pré-histórica, se tivermos em consideração o leque de reformas deste ramo do Direito que se têm sucedido em variadíssimos ordenamentos jurídicos).

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Talvez por influência do sistema português, a Constituição da República de Moçambique (CRM), optou por um modelo de divisão do Poder Judicial em diversas ordens jurisdicionais separadas, entre elas a administrativa, o que permite, tendencialmente, uma maior especialização do juiz admnistrativo. O art. 223º, n.º 1 e 2 da CRM inclui, entre as categorias de tribunais, o «Tribunal Administrativo» e, desde 2004, os «tribunais administrativos», implementando uma verdadeira hierarquia de tribunais na ordem jurisdicional administrativa. Foi a Constituição de 2004 que operou esta descentralização do Contencioso Administrativo, aproximando-o dos particulares e garantindo-lhes o exercício dos recursos contenciosos e acções administrativas contra as actuações ou omissões da Administração. Note-se, porém, que, ao contrário da ideia que a nossa Constituição imprime nos arts. 209º, n.º1, b) e 212º, a CRM não instituiu a obrigatoriedade da existência desses tribunais administrativos (ao contrário do que fez com os tribunais judiciais), limitando-se a prever que «Podem existir tribunais administrativos», no n.º 2, do art. 223º.
Um princípio sobre o qual nos temos debruçado ultimamente, tanto nas aulas teóricas, como nas aulas práticas – a tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares (consagrado no art. 268º, n.º 4 da CRP e 2º do CPTA) – está também previsto como farol do Processo Administrativo moçambicano, apresentando várias componentes, numa definição que se aproxima daquela que é dada pelo nosso legislador: um complexo de direitos que «compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão».
É o art. 2º da Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, que vem consagrar este princípio, numa formulação semelhante à nossa, segundo a qual «a todo o direito subjectivo público ou interesse legalmente protegido [note-se aqui uma divergência entre a opção tomada pelo legislador moçambicano e a teoria da norma de protecção, defendida, entre outros Autores, pelo Professor Vasco Pereira da Silva] corresponde um meio processual próprio». Tal formulação implica o estabelecimento de formas de processo (seja processo declarativo, executivo ou tutela cautelar) necessárias para se fazer valer em juízo os direitos subjectivos dos particulares. Isto exige, também, o abandono do princípio de tipicidade dos meios processuais no Contencioso Administrativo (como foi feito no nosso ordenamento). Contudo, a Primeira Secção do Tribunal Administrativo de Moçambique não considera, ainda, esta face essencial do princípio da tutela jurisidicional efectiva, continuando a afirmar o princípio da legalidade dos meios processuais.
No que toca aos meios processuais propriamente ditos, parece-me que o legislador moçambicano tomou a opção contrária à que foi seguida pelo nosso legislador em 2000. De facto, os arts. 12º e 101º a 103º da referida Lei do Processo Administrativo de Moçambique dão-me a entender que se optou por seguir o modelo alemão, criando-se tantos meios processuais como efeitos das sentenças (como sabemos, o legislador português enveredou por um modelo mais próximo do latino, criando dois meios processuais «de banda larga», que abarcam todos os pedidos ou efeitos das sentenças). Deste modo, entre nós, o CPTA regulou os seguintes meios processuais:
- a acção administrativa comum (arts. 37º e seguintes)
- a acção administrativa especial (arts. 46º e seguintes)
- os processos urgentes: do contencioso eleitoral (arts 97º e ss.), do contencioso pré-contratual (100º e ss.) e das intimações (104º e ss.)
- os processos cautelares (112º e ss.)
- o processo executivo (157º e ss.)
Já a Lei n.º 9/2001, de 7 de Julho, prevê os meios processuais que se seguem:
- recursos contenciosos (26º e ss.)
- acções: acções sobre contratos administrativos (101º), acções para a efectivação da responsabilidade civil extracontratual (102º) e acções para reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos (103º e ss.)
- intimação para informação, consulta de processo ou passagem de certidão (93º e ss.)
- meios processuais acessórios: suspensão da eficácia de acto administrativo (108º e ss.), intimação a órgão administrativo, a particular ou a concessionário para adoptar ou abster-se de determinada conduta (120º e ss.)
- processos urgentes
- processo executivo (164º e ss.)

Termino, então, esta análise – algo simplista, é certo, e sem qualquer pretensão de um carácter exaustivo – parafraseando Gilles Cistac, ao apelar à consolidação do movimento de crescimento do Processo Administrativo em Moçambique «desde a independência do país para que se realize e prolongue o “milagre” do Direito Administrativo».

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Textos Legislativos:
- Constituição da República Portuguesa
- Código de Processo nos Tribunais Administrativos
- Constituição da República de Moçambique
- Lei do Processo Administrativo de Moçambique (Lei n.º 9/2001, de 7 de Junho)

Referências Bibliográficas:
- PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Novembro de 2005
- CISTAC, GILLES, História do Direito Processual Administrativo Contencioso Moçambicano (http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/CistacGilles.pdf)
- CISTAC, GILLES, O Direito Administrativo em Moçambique (http://www.ta.gov.mz/IMG/pdf/Direito_Administrativo_em_Mocambique.pdf)

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