terça-feira, 20 de outubro de 2009

Do Divã para a Cadeira: Uma Terapia de Grupo do Contencioso Administrativo de Portugal e de Cabo-Verde

Em resposta ao desafio proposto pelo Professor Vasco Pereira da Silva, segue-se uma breve análise de direito comparado, relativa ao Contencioso Administrativo de Portugal e de Cabo-Verde.

Desde 2007, o Estatuto do Contencioso Administrativo de Cabo-Verde, Decreto-Lei n.º 14-A/83 de 22 de Março, tem sido objecto de uma profunda reforma, que marca uma radical mudança de paradigma a nível da Justiça Administrativa cabo-verdiana. O Ante-projecto do Código da Justiça Administrativa, redigido a Novembro de 2007, trouxe consigo uma pretensão de modernização do Contencioso Administrativo cabo-verdiano, aproximando-o dos modelos europeus, e nomeadamente do modelo português.

Aponta-se como pedra de toque do novo regime de Contencioso Administrativo cabo-verdiano, o princípio da tutela jurisdicional efectiva – que é, aliás, um princípio de imposição constitucional, vazado no artigo 21º e na alínea e) do artigo 241º da Constituição da República de Cabo-Verde (CRCV).
Pelo reforço da efectividade da tutela jurisdicional das situações subjectivas dos particulares em face da Administração, pretende-se um reajustamento da posição do particular na arquitectura do Direito Administrativo, na qual o sujeito se afigure cada vez menos como destinatário passivo dos poderes da Administração Pública, e cada vez mais como ente titular de direitos e deveres no âmbito da relação jurídica administrativa.
É a ruptura com o pensamento clássico de Laferrière e de Otto Mayer, a superação de “traumas” também observada em Portugal, sucessivamente ao longo das diversas reformas de 1984/1985, de 1989, de 1997 e – por final - de 2004.

Há que notar que já na Lei de 1983 do Contencioso Administrativo cabo-verdiano, se previa no artigo 6º, um mecanismo processual administrativo destinado a reintegrar situações jurídicas subjectivas lesadas. Contudo, a lesão susceptível de constituir causa de pedir era cingida àquela que fosse provocada por acto administrativo. De forma a assegurar a plenitude da tutela jurídica subjectiva, o Ante-projecto do Código da Justiça Administrativa (CJA), passa a incluir no conceito de acto não só as acções, mas também as omissões, e não só os actos administrativos, mas também os actos materiais e, em geral, todos os comportamentos no exercício da actividade administrativa. Com igual propósito de efectividade da tutela, é reforçado o princípio da cumulabilidade de pedidos (21.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 14-A/83); é introduzido o princípio da atipicidade de pedidos (206º CJA) e é admitida a modificação objectiva da instância (31º CJA).

O artigo 208º da Constituição de Cabo-Verde estabelece o objecto da justiça administrativa: “dirimir conflitos de interesses públicos e privados, reprimir a violação da legalidade democrática e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.
Para além da divergência com a teoria da norma de protecção, daqui se aferem as principais linhas de tutela jurisdicional efectiva: a plenitude da tutela jurídico-administrativa subjectiva (tutela das situações jurídicas subjectivas dos particulares em face da Administração), e a efectividade do controlo jurídico objectivo (isto é, o controlo da legalidade administrativa pela legalidade, independentemente de se saber se o acto ilegal ofendeu situações jurídicas subjectivadas). Analogamente, o modelo de Contencioso Administrativo português caracteriza-se por ter um pendor predominantemente subjectivista, embora com algumas manifestações do modelo objectivista. A acção popular, prevista no nº2 do artigo 9º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e no artigo 227º do Ante-projecto do CJA, é exemplo de um mecanismo de controlo jurídico objectivo, através da qual os cidadãos – desinteressadamente, com vista à tutela de interesses metaindividuais e valores constitucionalmente protegidos (como a saúde pública, o ambiente) - vêm promover a reposição jurisdicional da legalidade.

Quanto à composição dos meios processuais do exercício da justiça administrativa, Cabo-Verde, à semelhança da solução perfilhada em Portugal, na Inglaterra e no Brasil (ainda que em termos muito diferentes entre si), opta por aproximar o processo da justiça administrativa ao processo civil. Tanto através do artigo 41º do Decreto-Lei nº14-A/83, como do artigo 78º do Ante-projecto do CJA, combina-se a adopção de meios processuais específicos com o uso de meios do processo civil, de aplicação subsidiária. Distingue-se assim, do modelo francês e do alemão, que conferem à actividade jurisdicional administrativa meios processuais apenas dela próprios.
Contudo, importa notar que uma vez aplicados à justiça administrativa, os princípios do processo civil podem sofrer desvios ou ganhar excepções, por razões de interesse público. A sujeição da acção administrativa comum e dos recursos das decisões jurisdicionais à matéria de processo civil é levada a cabo sem prejuízo dos princípios próprios do processo administrativo. A título exemplificativo, pode-se referir o princípio de acesso à justiça efectiva, plasmado no artigo 11º do CJA cabo-verdiano, paralelo ao princípio de promoção do acesso à justiça previsto no artigo 7.º do CPTA português – segundo o qual as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas.

Dentro do âmbito dos meios processuais específicos do Contencioso Administrativo, um dos aspectos totalmente inovadores do Ante-projecto do CJA é o relativo ao regime da impugnação de actos de indeferimento - expresso ou tácito - que se passa a fazer por via da acção de condenação à prática de acto devido. Anteriormente, em clara discrepância com o direito constitucional do cidadão à «imposição da prática de actos administrativos legalmente devidos» consagrado no artigo 241º da Constituição cabo-verdiana, a acção de condenação à prática de acto devido não era admitida como meio de impugnação de actos de indeferimento. De facto, não obstante o preceito constitucional, a realidade processual resultante do Decreto-Lei de 83 provava-se outra: o particular apenas podia recorrer à anulação jurisdicional do acto administrativo expresso de indeferimento, ou (em caso de inércia da Administração) à anulação de um presumido acto tácito negativo. Deste regime resultava que, ainda que o tribunal anulasse ou declarasse a nulidade do indeferimento, a tutela efectiva contra actos de indeferimento mantinha-se quase impossível de alcançar, pois, uma vez que o tribunal não podia impor a prática do acto devido à Administração, tal acabava por depender da boa ou má vontade da Administração.
Na ordem jurídica portuguesa, foi a partir da revisão de 1997 que a acção de condenação à prática do acto devido passou a ser imposta pela Constituição portuguesa como elemento essencial à efectividade da tutela jurisdicional administrativa. E, desde 2004, passou a figurar no elenco dos meios processuais específicos dotados de regime próprio.

Por final, tendo em conta a universalidade do princípio da tutela jurisdicional efectiva, verifica-se ainda o desdobramento deste em tutela cautelar e tutela executiva. Assim, em contraste com o artigo 24º do Decreto-Lei de 83 - que admite como único procedimento cautelar o incidente de suspensão de executoriedade do acto administrativo impugnado - o Ante-projecto do CJA adopta no artigo 206º o princípio da atipicidade das providências cautelares: já se permite a providência cautelar antecipatória, para além da conservatória.
No que toca à efectividade da tutela executiva, também se inova, introduzindo no ordenamento jurídico cabo-verdiano a figura (já consolidada nos direitos português, alemão e francês) da sanção pecuniária compulsória, pela qual se condenam os titulares dos órgãos incumbidos da execução no pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso para além do prazo limite estabelecido – nº6 do artigo 165º do Ante-projecto do CJA.

Desta forma concluo a análise comparativa dos sistemas de Contencioso Administrativo de Portugal e de Cabo-Verde, que não pretende ser exaustiva, mas antes focada em alguns aspectos processuais cruciais, que marcam a mudança de paradigma do Contencioso Administrativo cabo-verdiano e a sua subsequente aproximação ao modelo de Contencioso Administrativo português.

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Textos Legislativos:
- Constituição da República de Cabo-Verde
- Decreto-Lei
- Ante-projecto do Código da Justiça Administrativa
- Código de Processo dos Tribunais Administrativos

Referências Bibliográficas:
-PAES MARQUES, FRANCISCO, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, Almedina, Novembro 2007
- PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Novembro de 2005
- PEREIRA DA SILVA, VASCO, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, Fevereiro de 2003
- SÉRVULO CORREIA, Direito do Contencioso Administrativo, vol. I, Lex, Lisboa 2005

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