quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Comentário ao Acórdão do Pleno do STA de 3.05.2007, P. 029420




O presente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante: “STA”) incide sobre a questão da falta de prova por facto culposo da Administração, que constitui o objecto da causa de pedido por parte de particulares (A.), implicar necessariamente que recaia sobre uma das partes envolvidas e sobre possíveis terceiros (B.) o risco pelo facto praticado pela Administração.

De facto, o que os presentes Recorrentes (A.) pretendem é a anulação do despacho do Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que negou provimento ao recurso hierárquico interposto de despacho anterior e que os excluiu de um concurso de acesso interno para várias categorias de técnicos fiscais (e aprovou terceiros candidatos aos cargos), pelo facto de alegarem falta de rigor na avaliação das suas provas de acesso, sustentando que se os respectivos testes fossem devidamente reanalisados alcançariam estes a nota mínima de acesso aos referidos cargos técnicos, isto é, interpõem uma acção administrativa especial de anulação de um acto administrativo, prevista no art. 46º, nº2, a) do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante: ”CPTA”), por vício de erro nos pressupostos de facto da decisão da Administração. O que sucede é que, tendo sido a Administração notificada, nos termos do art. 528º do Código do Processo Civil (doravante: “CPC”), para juntar aos autos os testes por si realizados, esta afirma não os ter, inviabilizando a prova aos onerados (a quem era impossível apresentar os mesmos, por não lhes ser devida cópia dos testes). Ora, por este mesmo facto foi negado provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho que os excluiu do concurso, tendo em conta que recaindo sobre estes o ónus, atendendo à regra geral do art. 342º, nº1 do Código Civil (doravante: “CC”), estes não apresentaram a prova que constituía fundamento da sua causa de pedido.

Vem então o presente recurso dar razão aos Recorrentes, ao sustentarem que a sentença do Acórdão que lhes negou provimento ao recurso hierárquico é nula por excesso de pronúncia, atendendo ao art. 668º, nº1, d), do CPC, invocando a violação do princípio do contraditório (art. 3º do CPC), pelo facto de, não tendo a Administração juntado as provas que lhe cumpria apresentar, atendendo ao art. 519, nº2 do CPC, que remete para o art. 344º, nº2 do CC, vir a verificar-se uma situação de inversão do ónus da prova, isto é, o ónus passar a estar do lado da Administração e ser esta a responsabilizada pela falta de apresentação dos testes alegadamente mal avaliados. Mais especificamente, vem o art. 8º, nº3, do CPTA estatuir o princípio da cooperação e da boa-fé processual, impondo à Administração o dever de remessa ao tribunal do processo administrativo e dos demais documentos respeitantes à matéria de litígio (atendendo também à desigualdade da natureza das partes envolvidas), por presumir que a recusa de apresentação dos documentos em falta resulta da intenção de impedir ao tribunal o acesso a elementos que beneficiariam a parte contrária, atendendo assim à consequência do art. 84º, nº5 do CPTA, considerando provados os factos alegados pelos autores, aqui, os Recorrentes (e assim, a sustentação da inversão do ónus da prova). Como diria VASCO PEREIRA DA SILVA, esse dever de cooperação da Administração com os tribunais ”(...) nem [sequer] se traduz numa situação de desigualdade, relativamente ao particular, mas sim com a necessidade de facultar ao tribunal elementos de prova, que tanto podem ser favoráveis à Administração como aos particulares”, tendo em conta a ideia de que o processo administrativo é das partes, em igualdade de circunstâncias, entendidas na perspectiva subjectivista do Contencioso Administrativo.

O STA decide a favor dos Recorrentes, entendendo que, invertido o ónus da prova nos termos expostos, a falta de prova pela parte onerada resolve-se a favor da parte contrária (os aqui Recorrentes), o que vale a dar por procedente o vício de erro nos pressupostos de facto que no recurso contencioso aqueles haviam invocado. Até porque, “no quadro da relação jurídico-administrativa é mais fácil ao devedor fazer a prova do cumprimento do que ao credor provar o inverso” (TIAGO MACIEIRINHA), o que equivale a dizer que, no caso em apreço, havendo uma inversão do ónus da prova e correndo o risco por conta da Administração, devendo ter esta em sua posse os documentos em falta, e não já os Recorrentes, é a esta que deverá caber esse mesmo ónus.

Se a Administração não envia o processo, o Tribunal dá como provados os factos alegados por A. – presunção ficta -, como referido anteriormente. Entendemos, tal como Tiago Macieirinha, que esta presunção pode ser ilidida no caso de a Administração ter, por exemplo, outros elementos que sejam suficientes para fazer prova.

Ora, parece a decisão do STA fazer todo o sentido, já que, não sendo permitida a inversão do ónus da prova neste caso, implicaria, dada a impossibilidade dos Recorrentes de sustentar assim a sua causa de pedido, não tendo qualquer acesso aos documentos de avaliação, a negação absoluta do seu direito fundamental de acesso à Justiça e à tutela jurisdicional efectiva e plena, patente nos arts. 20º e 268º, nº4, da Constituição da República Portuguesa (doravante: “CRP”), respectivamente.

Está em causa uma relação jurídica multilateral, ou seja, há um acto administrativo que, simultaneamente, beneficia um particular (A) e prejudica outro (B – quem ficou com o lugar do concurso). Assim sendo, iremos analisar a possibilidade de ter havido, por parte da Administração, a violação do princípio da tutela de confiança relativamente ao terceiro (B). “No direito administrativo, o princípio da boa fé encontra-se previsto no artigo 266º, nº 2 da Constituição e no artigo 6º - A do Código de Procedimento Administrativo (doravante: “CPA”). Este último alargou o âmbito subjectivo de aplicação do princípio ao abranger não apenas a administração, mas também os particulares no seu relacionamento com esta. [...] Destaque-se que é o único dos princípios vertidos no CPA aplicável também aos particulares e não somente à Administração.” (PEDRO TELLES).

A concretização deste princípio implica o cumprimento de certos deveres para as partes: (i) não causar prejuízos injustificados à contraparte; (ii) não arguir invalidades a que tenham conscientemente dado azo; (iii) não criar, por via de comportamentos contraditórios, uma confiança legítima na outra parte, com o intuito de obter algum benefício (venire contra factum proprium); (iv) violar os deveres de protecção, informação e lealdade durante a fase negocial (A. LEITÃO).

Uma das vertentes deste princípio é o princípio da tutela de confiança que visa proteger a esfera jurídica do lesado contra uma actuação lesiva imprevisível e que, consequentemente, este último não pudesse evitar.

O princípio da tutela de confiança implica, segundo REBELO DE SOUSA, a verificação de determinadas condições cumulativas: (i) uma actuação geradora de confiança; (ii) essa situação de confiança ser justificada; (iii) um investimento de confiança; (iv) o nexo de causalidade; (v) a frustração da confiança. Passemos, então, à análise de cada uma delas.

A actuação geradora de confiança implica a manutenção de uma determinada situação jurídica ou a abstenção de um determinado comportamento. Note-se que a emissão por parte da Administração de um acto administrativo manifestamente ilegal não se considera uma actuação geradora de confiança.

Se a confiança depositada pelo destinatário (terceiro – B.) na posição assumida pelo agente (em concreto, a Administração) for legítima, então entende-se que há uma justificação. É necessário que, objectivamente, se verifiquem “sinais exteriores da Administração que levariam um destinatário normal a acreditar na existência de uma situação de confiança” (PEDRO TELLES).

Só se poderá considerar que houve um investimento de confiança se o lesado tiver agido com base na declaração efectuada pela contraparte. Não se pretende, porém, tutelar o excesso de confiança.

Há, ainda, que ter em conta dois nexos de causalidade: um nexo entre o primeiro e o segundo requisitos e outro entre o segundo e o terceiro requisitos.

Por último, o lesado terá que ter visto frustrada a sua confiança pelo lesante.

A consequência da violação do princípio da boa fé é a anulabilidade do acto, nos termos do art. 135º do CPA. Pois este princípio é um princípio geral de direito que se encontra consagrado na CRP e no CPA e que vincula directamente a Administração.

Por outro lado, a violação da boa fé é um facto gerador de responsabilidade civil para o lesante, o que vem justificar a responsabilidade por culpa in contrahendo no âmbito da contratação pública.

Não há, contudo, factos suficientes para determinar se os requisitos se verificaram e para determinar se ocorreu a violação do princípio da tutela da confiança por parte da Administração. No entanto, considerando que, de facto, tal aconteceu, poderia estar em causa a responsabilidade civil pública por parte da Administração em relação a danos provocados a B. [art. 4º, nº 1, al. g), Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais].

Uma possível solução consistiria numa sentença de anulação do acto e de uma posterior repetição de todos os exames, possibilitando que todos estivessem novamente numa situação de igualdade. No entanto, esta não nos parece a melhor solução, uma vez que o erro foi da Administração e, como tal, o risco deveria caber-lhe apenas a esta e não aos particulares.

Defendemos, como solução, a aplicação analógica do art. 173º, nº 4 do CPTA, possibilitando a B. a recolocação em lugar de categoria igual ou equivalente àquele em que fora colocado ou, não sendo isso possível, à primeira vaga que venha a surgir na categoria correspondente. No caso sub judice, isso significaria que B manteria o seu lugar.

Quanto a A., a este deveria ser atribuída uma indemnização decorrente da responsabilidade civil pública da Administração por não ter atribuído o cargo a A., considerando que os factos foram provados e que ocorreu um vício de erro nos pressupostos de facto do acto administrativo em questão.



Bibliografia:

LEITÃO, A., A Protecção Judicial dos Terceiros nos Contratos da Administração Pública, Almedina, 2002.

MACIEIRINHA, Tiago, Da Ilicitude na Responsabilidade Civil da Administração Pública, Janeiro 2006.

PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009.

SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral - Introdução e Princípios Fundamentais.

TELLES, Pedro, O Dano na Responsabilidade Pré-contratual da Administração por Violação do Princípio da Boa Fé, Dezembro 2005.

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