sábado, 7 de novembro de 2009

“Nem tudo o que é em excesso faz mal”: A Legitimidade Activa dos artigos 55.º/1/a e 9.º/1 CPTA.


“Nem tudo o que é em excesso faz mal”: A Legitimidade Activa dos artigos 55.º/1/a e 9.º/1 CPTA.



Contrariando o nosso estimado colega Tito Rendas, gostaríamos de exprimir as nossas maiores dúvidas relativamente à sua doutrina segunda a qual “tudo o que seja em excesso faz mal”. Isto porque, tirando as suas brilhantes conclusões relativamente à acção popular em geral, não cremos que seja verdadeira a afirmação acima exposta. Por exemplo:


- O saber não ocupa lugar, logo o excesso de conhecimentos apenas poderá ser benéfico.


- O excesso de filmes não faz mal a ninguém, a não ser que sejam do Quentin Tarantino ou de outro qualquer “pipoqueiro de hollywood”.


- Comida em excesso não faz mal: é sempre melhor do que a falta da mesma.


- Amor em excesso é sempre melhor do que amor em falta.


- Excesso de posts neste blog não é grande problema, antes pelo contrário, garante a não reprovação na cadeira, pelo menos directamente.

Tudo isto porque durante esta semana tivemos a infelicidade de ir assistir a uma aula prática, ainda, com “falta de excesso” de conhecimento doutrinário acerca da legitimidade processual activa nas acções administrativas especiais. Se soubéssemos demais (ou, em excesso), não pecaríamos por menos.


*

Breve enunciação das diferentes teorias acerca das posições substantivas dos particulares.


A questão é a de saber como se configuram as posições substantivas dos particulares em face da Administração. Elas podem, segundo alguma doutrina, ser reconduzidas a seis principais concepções.


- As posições dos particulares são uma “mera situação de interesse de facto que confere aos indivíduos legitimidade processual, uma vez que possuem um interesse próximo do da Administração”. No fundo os particulares não defendem nenhuma posição jurídica subjectiva face à Administração. É, nomeadamente, a posição de Laferrière, Hauriou ou de Machete).


- Elas são um “direito à legalidade" ou um "direito reflexo" que os indivíduos fazem valer no processo” (Jellinek ou Marcelo Caetano). É a posição da “Escola Subjectivista” francesa, defendida em Portugal por Marcelo Caetano. Segundo este autor, que cita Bonnard, o direito subjectivo é o “poder dos particulares de exigir dos órgãos e agentes da Administração a observância estrita dos preceitos legais que os vinculam” que serve ao mesmo tempo “os interesses privados dos particulares e o interesse público de uma Administração submissa à lei”. Mas vai-se ainda defender, através da teoria de Jellinek, a existência de uma noção objectiva de direitos subjectivos, os “direitos reflexos”: “os da esfera dos efeitos secundários que são uma consequência necessária da lei e os quais ela deve levar em conta, ou mesmo regular expressamente” (Bachof); essas posições de vantagem atribuídas pela lei aos particulares são-no apenas porque a lei o quer e enquanto ela o quer. São direitos reflexos porque o se conteúdo coincide com a lei objectiva, ficando na disponibilidade dela.


- Existem duas modalidades de posições jurídicas distintas: os direitos subjectivos e os interesses legítimos, “consoante o poder de vantagem do individuo resulte imediata e intencionalmente das normas jurídicas ou seja atribuído, apenas, de forma mediata e reflexa” (Zanobini e Freitas do Amaral). Para Freitas do Amaral, “tanto na figura de direito subjectivo como na do interesse legítimo, existe sempre um interesse privado reconhecido e protegido pela lei”. A diferença é que no direito subjectivo a protecção é directa e imediata, tendo o particular “ a faculdade de exigir à Administração pública um comportamento que satisfaça plenamente o seu interesse privado”, enquanto no interesse legítimo a protecção em causa é apenas indirecta ou reflexa, sendo que o particular apenas tem “a faculdade de exigir à Administração um comportamento que respeite a legalidade”. O direito subjectivo é “um direito à satisfação de um interesse próprio” e o interesse legítimo “um direito à legalidade das decisões que versem sobre um interesse próprio.


- Existem duas modalidades de posições jurídicas distintas (ainda direitos subjectivos e interesses legitimos), mas que se distinguem agora “consoante se trate ou não de uma situação dependente do exercício do poder administrativo” (Rui Machete).


- Existem duas modalidades diferentes, mas que se caracterizam agora por direitos subjectivos “clássicos” ou “activos” e por direitos subjectivos “novos” ou “reactivos” [“eventuais” ou “futuros”] (Enterría e Medeiros).


- Apenas existe “uma única categoria de situações jurídicas dos particulares, a dos direitos subjectivos” (Bachof, Badura, Pereira da Silva). É a chama “teoria da norma de protecção” em que o conceito de direito subjectivo público foi-se progressivamente aperfeiçoando e alargando. Para que exista um direito subjectivo, é necessário que a norma jurídica preencha vários requisitos: ter carácter vinculativo e exclua a discricionariedade da Administração, ter sido emitida também para a protecção dos direitos dos particulares, e que “a sua atribuição tenha como efeito o facto de os interessados poderem recorrer por causa dela […] a meios destinados a obter uma determinada conduta por parte dos órgãos administrativos”. Dela tem de resultar, no fundo, uma situação de vantagem objectiva concedida de forma intencional ou através de um direito fundamental.


Influência da teoria adoptada na definição de “legitimidade processual”.


A discussão acerca da definição das posições jurídicas substantivas dos particulares face à Administração pode parecer não ter, à primeira vista, qualquer relevância na determinação do conceito de legitimidade processual (e no caso de que agora se trata, no conceito de legitimidade activa). Contudo, tem e é da maior importância prática, sendo que, como escreve o Professor Vasco Pereira da Silva no seu Para um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação, “o entendimento do particular como titular de posições jurídicas substantivas face à Administração vai implicar uma mudança radical do modo de considerar a figura da legitimidade processual”. No fundo a interpretação do que seja um “interesse directo e pessoal” depende da posição adoptada relativamente às teses acima expostas


Diferentes Posições quanto à Legitimidade Activa


De inicio convem salientar que grande parte das querelas doutrinárias provêm de uma falta de rigor do legislador, muitas vezes por não se ter exprimido como lhe era devido. Esses casos são frequentemente casos onde, das duas uma: ou o legislador pura e simplesmente não conseguiu ser perceptível quanto àquilo que quis regular (usando, por exemplo, expressões ambíguas), ou então teve medo de não estar a ser inteligível e teve um especial cuidado na explanação daquilo que estava a regular, cuidado esse que se traduz na emissão de normas indecifráveis (nomeadamente, por parecerem ser contraditórias).


No nosso caso, o legislador “juntou o útil ao agradável” e decidiu incluir não só uma, mas as duas formas de “má legislação”: não se percebe bem o que quererá dizer “interesse directo e pessoal” (o que provoca “ondas doutrinárias” de imaginação), e, por outro lado, decidiu o legislador (para que ficasse bem claro!) inserir duas normas acerca da legitimidade activa [o artigo 9.º e o 55.º], em alguns aspectos pouco explicitas, senão contraditórias.


Porquê a expressão “Interesse Directo e Pessoal”?


Antigamente, quando se entendia que o particular, no processo, não era possuidor de nenhuma posição jurídica em face da Administração Pública, a figura da legitimidade, como escreve o Prof. Pereira da Silva, “adquiria uma importância desproporcionada”, isto porque era ela, e ela apenas, que determinaria se o particular podia ou não ser parte no processo: o que interessava era apenas a alegação de um mero interesse de facto e não, já, a afirmação de um direito subjectivo lesado.


Qual era então o critério para averiguar da legitimidade ou não do particular? Como a implementação deste tipo de recurso (segundo o Professor, um “recurso de legalidade”) deveria, no fundo, ter levado à adopção de uma “acção popular genérica” [acerca desta questão, ver o comentário do nosso colega Tito Rendas, “A Popularidade Amputada das Acções Populares”], pois qualquer cidadão poderia ser parte num processo desde que invocasse uma situação de violação da legalidade, e a sua vontade em corrigir esse facto, e tal, obviamente, não se verificou, sobretudo por uma questão prática (o possível – e muito provável – “entupimento” dos tribunais), o critério de filtro dos sujeitos que podiam ir a juízo interpondo recurso passou a ser, exclusivamente, o interesse processual.


Como se determina o enunciado “Interesse Processual”? Aqui Hauriou dá-nos uma boa ajuda. É que para este jurista, o interesse do particular para intervir no processo deve ser “directo, pessoal e legítimo”.


Deve ser “directo ou imediato” pois o interesse tem de ser actual e não meramente eventual, e porque a anulação do acto em causa deve ter como fundamento a “satisfação imediata ao reclamante, e não longínqua”.


Por outro lado, deve ser pessoal uma vez que o interesse não se deve confundir com o interesse inerente a uma acção popular: deve ser uma situação do particular (e apenas dele) em face do acto que este quer anulado.


Finalmente, o interesse deve ainda ser legítimo, isto é, resultar “de uma situação jurídica definida em face da Administração”.


Logo, o Interesse Processual afere-se em função do interesse em causa ser directo, pessoal e legítimo. Embora, na nossa ordem jurídica não se tenha, hoje, previsto como requisito (como defendia Marcelo Caetano) aquele último porque ele apenas é, como veremos mais adiante através da tese do Prof. Pereira da Silva, uma “mera decorrência lógica do direito subjectivo que o particular faz valer no processo”.


Quais as diferentes Posições Doutrinárias acerca da Legitimidade Activa?


§ Prof. Vieira de Andrade e Prof. Aroso de Almeida - “A Acção Particular”


No entendimento deste professor, a "acção particular" prevista no artigo 55º n.º 1 alínea a) pode ser intentada por quem alegue ser titular de um potencial benefício, i.e., a quem retirar imediatamente da anulação ou declaração de nulidade um qualquer benefício específico para a sua esfera jurídica.


Em virtude da última reforma do Contencioso Administrativo e em confronto com a lógica tradicional (tripartida: interesse pessoal, directo e legitimo) deixou de se exigir que o interesse seja "legítimo". Tal mudança teve como intuito acentuar a ideia de que basta um interesse de facto para que o particular possa intentar a acção pretendida e não se exigindo sequer a titularidade por aquele de um interesse legalmente protegido (e não, obviamente, no sentido de permitir alegar-se um interesse “ilegítimo”). Ora este professor dispensa portanto a titularidade de um interesse legalmente protegido.


É portanto assim titular de um "interesse directo" quem retire (retirar) de forma imediata um determinado (qualquer) benefício da acção. E será é titular de um “interesse pessoal” quem retire esse benefício para a sua esfera jurídica mesmo que não invoque a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada. Assim, em suma, não existiria um carácter directo do benefício quando este se mostre meramente eventual - este problema situando-se na fronteira entre a existência de verdadeira legitimidade e a mera necessidade de protecção judicial. Por outro lado quanto ao interesse pessoal, o professor admite que, por exemplo, os associados de uma pessoa colectiva poderão a título individual recorrer de actos que produzam efeitos na esfera jurídica dessa mesma associação.


No mesmo sentido, o Prof. Aroso de Almeida afirma que “a legitimidade individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa de um direito ou interesse legalmente protegido, mas […] basta a circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado, consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de modo que a anulação ou a declaração de nulidade desse acto […] traz, pessoalmente a ele, uma vantagem directa (ou imediata) ”. Mais, “ como é da tradição do nosso contencioso administrativo, a anulação ou declaração de nulidade de actos administrativos pode ser, […] pedida a um tribunal administrativo […], no sentido que reivindica para si próprio uma vantagem jurídica ou económica que há-de resultar dessa anulação ou declaração de nulidade”.


§ Prof. Pereira da Silva – “ O Direito de Acção por Privados”


No artigo 55º n.º 1 alínea a) do CPTA que se refere à legitimidade activa está em causa o exercício do direito de acção usado por privados que defendem os seus interesses próprios, mediante a alegação daquilo a que o professor chama de " titularidade de posições subjectivas de vantagem" em face da Administração Pública.


O professor refere-se ao “interesse pessoal e directo” como sendo um direito subjectivo em sentido amplo, rejeitando por isso a distinção tradicional tripartida que diferencia e separa direitos subjectivos em sentido restrito, interesses legítimos e interesses difusos ou os então denominados direitos de 1ª, 2ª e 3ª categoria.


Desta forma quando a norma especial do artigo 55º refere “interesses directos e pessoais” tal significa que gozam da acção para defesa de interesses próprios todos os indivíduos que demonstrem ser titulares de uma posição jurídica de vantagem ou sejam parte na relação material controvertida. Isto porque, como escreve o Prof. Pereira da Silva, “o carácter pessoal e legítimo do interesse é uma mera decorrência lógica do direito subjectivo que o particular faz valer no processo. O interesso é pessoal, porque o particular alega ser titular de um direito, que se encontra na sua esfera jurídica e que foi lesado por uma conduta ilegal da Administração; e é legítimo, porque esse direito lhe foi conferido pelo ordenamento, através de uma norma atributiva de um direito ou através da imposição, em seu benefício, de um dever à Administração”.


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Conclusão


Em termos teóricos, estas duas doutrinas conduzem a resultados distintos. Por um lado a posição dos Profs. Vieira de Andrade e Aroso de Almeida traduz uma concepção mais ampla conduzindo a um conceito mais alargado de legitimidade activa processual, aferida pelo “interesse directo e pessoal” dos particulares, podendo ser um direito subjectivo, um interesse legalmente protegido ou um potencial benefício/utilidade na procedência da acção (também baseado na letra da lei do artigo 26.º/2 CPC). Possibilitaria em princípio uma maior protecção dos particulares contra a actividade administrativa. Contudo, daí adviria forçosamente uma desvantagem que poderia por em causa o próprio intuito da “acção particular”, i.e., transformaria o contencioso dos particulares numa “gigantesca acção popular”. Por outro lado, a teoria subjectivista do Prof. Pereira da Silva leva a uma mais restrita legitimidade processual, pois apenas a têm aqueles que sejam titulares de posições subjectivas de vantagem em face da Administração ou sejam partes da relação material controvertida.


Em termos práticos, quer se adopte uma ou outra posição será sempre difícil determinar um critério legal suficientemente preciso para que o juiz possa decidir liminarmente e sem sombra de dúvida um qualquer caso controvertido. Assim sendo, acabará sempre por ter o juiz de analisar casuisticamente cada situação controvertida de forma a determinar se está ou não em causa um interesse directo e pessoal, não se distanciando da letra da lei.


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Bibliografia:


- AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2003.

- PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2009.

- PEREIRA DA SILVA, VASCO, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares - Esboço de uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação, Coimbra, 1997.

- PAIS DO AMARAL, JORGE AUGUSTO, Direito Processual Civil, Almedina, 2009.

- VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS, A Justiça Administrativa, Almedina, 2007.




Francisco Mendonça e Moura – 140105519;

João Marques Ribeiro – 140106012.

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