quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A popularidade amputada das acções populares













Tudo em excesso faz mal.

Café em excesso leva a um agravamento dos indicadores de inflamação no sistema cardiovascular, podendo gerar graves doenças cardíacas.

Água em excesso pode levar a hiponatremia e consequente desequilíbrio na concentração de água e sódio no corpo, que, nos casos mais graves, pode levar ao coma e à morte.

Tempo livre em excesso gera falta de criatividade.

Pacifismo em excesso transforma-se em militância.

Activismo pela liberdade em excesso torna-se tiranismo.

Ajuda em excesso transforma-se em estorvo.


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A actio popularis nasce no Direito Romano, ao lado das acções privadas, conferindo a qualquer cidadão isolado, em determinadas circunstâncias, legitimidade para instaurar processos, visando a tutela de interesses públicos. Para além de se destinar à defesa e restabelecimento da legalidade, a actio popularis era considerada uma faculdade de fiscalização cívica, fazendo do cidadão um defensor da legalidade e moralidade, revelando o seu carácter educativo.

Séculos mais tarde, as Ordenações Portuguesas previam a figura da acção popular no campo do Direito Penal e a acção popular supletiva, destinada a reagir contra quem se apossasse ilegitimamente de caminhos e servidões.

O Código Administrativo de 1940 volta a consagrar esta figura, dividindo-a nas modalidades de acção popular supletiva e correctiva.

Hoje – e após a revisão constitucional de 1989 – o art. 52º, n.º 3 da CRP confere “a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei”, “independentemente de terem interesse directo na demanda” (art. 2º, n.º 1 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto). O mesmo preceito vem, ainda, enumerar exemplificativamente (ideia que decorre da expressão “nomeadamente”) as matérias objecto do direito de acção popular (infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, o abiente, o património cultural), tendo sido, mais tarde, objecto de desenvolvimento pela chamada Lei da Acção Popular (a já referida Lei n.º 83/95) e pelo CPTA (art. 9.º, n.º 2, entre outros).

Este direito de acção popular tem sido encarado como um precioso instrumento da democracia participativa. De facto, nas democracias modernas, ao lado de um conceito de democracia representativa ou indirecta, tem sido dado um crescente relevo ao instituto da participação. O exercício do direito de voto não é suficiente para se afirmar uma plena participação do cidadão no poder: ao lado de normas constitucionais que prevêem a existência de associações sindicais, comissões de trabalhadores ou organizações de moradores, surge o art. 52º, n.º 3 como importante auxiliar na concretização do princípio da democracia participativa.

Este direito de acção popular desempenha, também, um relevante papel no aperfeiçoamento da mentalidade politica dos cidadãos. Nas palavras de Rafael Bielsa, “a acção popular é educativa e o seu exercício faz do cidadão uma espécie de cavaleiro cruzado, um colaborador da legalidade e moralidade administrativa; é uma forma de educar juridicamente o povo”.

Dito isto, facilmente se conclui que as acções populares são “corpos estranhos” aos regimes totalitaristas, “flores exóticas” que se querem murchas e secas.


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No dia 6 de Abril de 2009, o Governo Regional da Madeira aprova uma proposta de Decreto Legislativo Regional, com o objectivo de alterar na Região (de acordo com os poderes constitucionalmente conferidos) o regime jurídico nacional da urbanização e edificação (Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro). A alteração consistia em encurtar de dez para três anos o prazo para requerer, através de acções populares, a nulidade de licenciamentos de construções ou loteamentos que colidam com o interesse público.

Acérrimo opositor de acções populares, Alberto João Jardim justificou a drástica redução dos prazos com a necessidade de evitar “o prolongamento no tempo de prerrogativas que, a pretexto da prossecução do interesse público, consolidam situações de incerteza mais gravosas e prejudiciais do que aquelas que se pretendiam evitar”. Tudo isto, devido ao elevado número de acções populares que tinham vindo a ser intentadas, com vista a pôr fim a ilegalidades urbanísticas que ameaçavam arranhar os céus madeirenses.

Desde 2004, no Tribunal Administrativo do Funchal deram entrada cerca de 70 acções populares, entre um total de três centenas de processos cautelares e principais relativos a questões de urbanismo. O recorde foi atingido em 2005, com 26 acções.

No dia 17 de Junho de 2009, a Assembleia Legislativa da Madeira aprovou o referido Decreto, sendo que os partidos que aprovaram esta medida justificaram a sua posição dizendo que o diploma vem defender a segurança do investimento.


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Não sou um adepto da acção popular levada ao extremo. Já tivemos oportunidade de analisar nas aulas que, apesar de ser um meio processual que favorece a participação dos cidadãos na vida democrática, pode tornar-se injustificado ou incoerente, nomeadamente no caso da alínea d), do n.º 1, do art. 68º do CPTA, que confere legitimidade ao actor popular para desencadear um mecanismo (a acção de condenação à prática de acto devido) que se destina à protecção de direitos dos particulares. Sou adepto, isso sim, da fundamentação lógica e plausível da limitação de mecanismos que apontam para o aperfeiçoamento do referido princípio da democracia participativa. Uma fundamentação que se baseie em algo mais do que a promoção da “segurança no investimento”.


O excesso de popularidade insular da acção popular tornou-a impopular em certos sectores, levando à sua amputação parcial. É caso, mais uma vez, para dizer que “tudo em excesso faz mal”.


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Textos legislativos:

- CRP

- CPTA

- Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto


Referências bibliográficas:

- SOTTO MAIOR, MARIANA, O Direito de Acção Popular na Constituição da República Portuguesa, Documentação e Direito Comparado n.ºs 75/76, 1998

- PEREIRA DA SILVA, VASCO, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Novembro de 2005

- http://www.publico.clix.pt/

- http://www.jornaldamadeira.pt/

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