sábado, 7 de novembro de 2009

Insólitos do Contencioso Administrativo: O Caso Angolano




Evolução do contencioso administrativo angolano

Para de iniciarmos esta viagem pelo contencioso angolano temos que sentar no divã de psicanálise os dois momentos traumáticos da história política de Angola, ou seja, a primeira e a segunda repúblicas, de maneira a compreender como cada uma contribuiu para a criação de um sistema de justiça administrativa, e como despoletaram na sua personalidade algumas características bizarras...
A 1ª República foi marcada por um profundo vazio no que toca à justiça administrativa. A Constituição angolana não a refere uma única vez, nem tão pouco consagra o princípio da separação de poderes, mas, mesmo assim, há dois momentos que se podem considerar a proto-história do contencioso angolano no seu plano organizatório: aprova-se a Lei do Sistema Unificado de Justiça, Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro, que estabeleceu um novo sistema judicial e integrado, e a lei que define quais os tribunais com competência para questões que digam respeito à Administração Pública, Lei nº 17/90, de 20 Outubro. Um ano mais tarde, uma lei de revisão constitucional, Lei nº 12/91, de 6 de Maio veio prever que os tribunais decidem a legalidade dos actos administrativos, o que vem efectivar o seu plano material.
Este défice de atenção conduz a uma Administração Pública de funcionamento quase ilimitado...
É na 2ª República que nasce a Lei Constitucional vigente, e com ela nascem três características deterministas deste contencioso e outras quantas contradições. Nada nos espanta, basta comparar com o fenómeno turbulento que é o da adolescência da raça humana.
Assim, a Administração Pública passa a subordinar-se ao princípio da legalidade, consagram-se direitos fundamentais dos cidadãos, e prevê-se a criação de Tribunais Administrativos, autonomizados dos comuns
Repare-se que o Sistema Unificado de Justiça de que tanto se fala, não comporta verdadeira unificação, o que existe realmente é um sistema de múltiplas jurisdições e de unidade material mitigada. Complicado? Expliquemos então, a Lei Constitucional de 92 consagra um monismo de judicatura e a solução encontrada para fundamentar a integração da jurisdição administrativa nos tribunais comuns é a da sua falsa especialização, “tentando” ir ao encontro do ensinamento de Hertegen “julgar a administração é especifico”. Veja-se a ambiguidade presente nos nomes, Sala do Cível e Administrativo, nos Tribunais Provinciais, e Câmara do Cível e Administrativo no Tribunal Supremo, e nas questões controvertidas que são apreciadas por juízes da jurisdição ordinária comum. Mas não se assustem, esta designação legal ambígua vai ser superada por uma “evolução nominal” bem mais esclarecedora e especializada: Câmara/Sala do Cível, Administrativo, Trabalho e Família. No final das contas não se perspectivou nenhuma evolução, para além da nominal, confundem-se as quatro jurisdições e não se faz nada no sentido de construir fronteiras que garantam a celeridade processual e boa administração.
Este sistema singular é resultado da conturbada história angolana, desde o seu estatuto de colónia portuguesa, passando por uma independência conquistada através de mais de dez anos de guerra colonial e imediatamente seguida de um longo e sangrento período de guerra civil até ao seu estatuto actual de potência económica em ascensão.


Outras excentricidades do sistema angolano

Sabia que…


· Apesar do art.43º da Constituição ter um conteúdo muito semelhante ao art.268º nº4 da Constituição portuguesa, o direito fundamental à tutela efectiva, imediatamente exequível e princípio constitucional da máxima efectividade é um mero ideal, em face das reais limitações impostas pelo sistema angolana?
· São os tribunais comuns que decidem sobre os litígios em que a Administração é parte, por aplicação de normas de direito administrativo?
· Sistema processual é de tipo objectivista (defensa da legalidade e o interesse publico, em que o juiz só pode anular actos ilegais e tem poderes de cognição limitados)?
· É um contencioso administrativo de actos – não há contencioso regulamentar e só há parcialmente contencioso de contratos administrativos (sim, contratos administrativos no sentido tradicional)?
· As acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado são julgadas nos tribunais cíveis?
· A função política e legislativa não são passíveis de impugnação em sede de contencioso administrativo?
· Os actos políticos, proferidos em processo disciplinar, laboral, fiscal, aduaneira, civil também são inimpugnáveis?
· Os actos administrativos gerados no quadro das relações jurídico-administrativas inter subjectivistas podem ser apreciados mas não os gerados no quadro de relações intra-orgânicas?
· Os juízes fiscalizam, anulam, declaram o acto nulo mas não podem condenar na prática do acto devido?
· O recurso contencioso ainda é obrigatoriamente precedido de reclamação ou recurso hierárquico, conforme os casos?
· Existe um Princípio da tipicidade das formas processuais, ou seja, os particulares só podem impugnar de acordo com os meios processuais previstos na lei, notando-se um grande e quase exclusivo contencioso contra actos administrativos?
· Em princípio são as partes interessadas que promovem o processo contencioso administrativo, mas nem sempre é assim, pois por vezes não são as partes em determinadas situações a ter iniciativa processual: isto acontece sempre que em causa está um acto administrativo inconstitucional ou ilegal, cabendo a legitimidade processual apenas ao M.P.?
· Os fundamentos da decisão do juiz não têm de se limitar aos factos invocados pelas partes, uma vez que prevalece a verdade material sobre a verdade formal (juiz não pode, contudo, violar o princípio da tipicidade processual e o âmbito do processo, previamente fixado pelo pedido e pela causa de pedir)?
· Não se consideram só os factos alegados e provados por uma das partes. O contencioso administrativo não tem como função apreciar se uma ou outra parte tem um direito subjectivo; o que está em causa é a apreciação da conformidade de um acto com a lei?
· A lei processual administrativa angolana só tem em conta a competência material? Mas ainda assim, quando se fala em competência do tribunal, também se fala em competência territorial, em competência em razão da hierarquia e em competência em razão do valor?
· Os tribunais administrativos se encontram organizados em “Sala do Cível e Administrativo”, “Câmara do Cível e Administrativo” e “Plenário do Tribunal Supremo”?
· É aceite a coligação de demandantes e demandados, mas os requisitos para os primeiros (tribunal competente tem de ser o mesmo em função ou em razão da hierarquia e do território) são menos exigentes que os requisitos para os segundos (fundamentos do recursos contencioso, quer de facto, quer de direito, têm de ser os mesmos, e o tribunal competente para o conhecimento do recurso tem também de ser o mesmo em razão de hierarquia e território)?
· Pode intervir nos actos como demandante ou demandado todo aquele que tiver ou demonstrar ter um interesse idêntico à parte com a qual pretende coligar-se. Contudo, apenas é admitido até ao último dia do prazo para a apresentação dos articulados, tendo o assistente um papel subordinado, auxiliar à parte principal, razão pela qual não perturba o normal decurso do processo?
· Não são recorríveis os actos de natureza política?
· A lei angolana estabelece que apenas podem ser impugnados os actos administrativos de carácter definitivo e executório, o que tem como consequência não serem recorríveis os actos que não sejam administrativos, os actos administrativos internos, os actos administrativos não definitivos e não executórios? Que o legislador angolano estabelece a definitividade e a executoriedade como condição de acesso à justiça administrativa, ao invés de estabelecer a definitividade por lesão?
· Também não são recorríveis os actos administrativos que sejam a confirmação de outros? Nem os actos administrativos proferidos em processo de natureza disciplinar, laboral, fiscal (não se pode impugnar os actos da Administração Fiscal lesivos dos interesses dos contribuintes) ou aduaneira? Nem os de natureza cível que estejam afectos à jurisdição própria?
· Se a entidade que tem o dever de contestar não o fizer, não há a confissão dos factos deduzidos? Que a falta de contestação não tem como efeito a aceitação dos factos nem do pedido, o que vigora é o princípio da verdade material?
· A autoridade recorrida, quando notificada, poder ter uma das seguintes reacções: responder, sustentando a validade do acto; responder, limitando-se a oferecer os merecimentos dos autos, cujo conteúdo é nada mais do que uma resposta de que se tomou conhecimento do acto e se irá acompanhar; não responder ou a qualquer momento, até ao termo do prazo da contestação, revogar o acto por si praticado? E que neste último caso, a situação volta ao status quo ante e a instância extingue-se, porque já não há objecto do contencioso administrativo, já não há acto administrativo ilegal?
· Após apresentadas as alegações, ou findo o respectivo prazo, vão os autos com vista ao M.P., que vai apreciar os eventuais vícios de que pode enfermar o processo e pronuncia-se pelo provimento ou pela negação do provimento ao recurso contencioso?
· Tanto o momento como os modos do cumprimento dependem, dentro de certos limites, de uma decisão discricionária da A.P., ou seja, de uma escolha livre entre duas ou mais soluções possíveis: se o acto anulado é irrevogável, a A.P. pode optar entre o cumprimento da sentença e a invocação de uma causa legítima de inexecução, pelo que, embora sujeito a controle jurisdicional, afasta, desde logo, qualquer automatismo do alegado efeito repristinatório?
· Apesar de existir um dever de executar a sentença, a A.P. pode invocar uma causa legítima de inexecução da sentença? Ou seja, o dever de reposição da situação anterior pode cessar quando esteja em presença uma causa legítima de inexecução ou incumprimento da decisão, obrigando, no entanto, a A.P. a pagar uma indemnização compensatória ao titular do direito à execução?
· A principal lei do Contencioso angolano (Lei nº 2/94 de 14 de Janeiro) reúne normas equivalentes ao CPA (por exemplo, a definição de acto administrativo e poderes delegados), ETAF (como a divisão de competência entre os tribunais e o seu funcionamento), CPTA (entre outras, normas sobre alçadas, poderes de cognição do juiz e legitimidade processual), CPC (como sejam a tramitação pormenorizada do processo, actos de secretaria e custas) e Lei da Arbitragem Voluntária?
· Além desta grande lei, e embora esta contenha um título dedicado à suspensão da eficácia dos actos administrativos, existe uma lei autónoma relativa a esta matéria (Lei nº 8/96 de 19 de Abril – Lei de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo)?
· A Lei de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo, apesar do nome, regula não apenas a suspensão da eficácia do acto administrativo, como também da decisão judicial?
· Se a Administração revogar o acto objecto de impugnação, o tribunal porá fim ao processo (independentemente dos efeitos já produzidos)?
· Não existem critérios de competência material dos tribunais administrativos em vista da organização judiciária sui generis em vigor?
· O valor das alçadas é fixado em função do valor do salário mínimo da função pública?
· É proibida a arbitragem nas acções derivadas de contratos administrativos (com excepção dos contratos que revistam a natureza de contratos económicos internacionais)?
· A forma de execução das sentenças varia consoante as entidades demandadas (Estado ou entidades particulares)?
· Existe a possibilidade de execução de multas administrativas?
· É possível suspender a eficácia da decisão judicial, por seis meses, quando esta for susceptível de causar prejuízo grave para o Estado?
· Quaisquer dúvidas e omissões são na interpretação e aplicação das principais leis de contencioso administrativo são resolvidas pela Assembleia Nacional ou pelo Conselho de Ministros, dependendo da lei em questão?



Bibliografia:

PACA, Cremildo, Direito do Contencioso Administrativo Angolano, Almedina, 2008

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009

Legislação angolana:
Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro
Lei nº 17/90, de 20 Outubro
Lei nº 12/91, de 6 de Maio
Lei nº 2/94 de 14 de Janeiro
Lei nº 8/96 de 19 de Abril
Lei Constitucional da República de Angola
Legislação portuguesa
Constituição da República Portuguesa
Código do Procedimento Administrativo
Código de Processo nos Tribunais Administrativos
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
Lei da Arbitragem Voluntária
Código de Processo Civil

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